Ivaldo Lemos Junior é Promotor de Justiça do MPDFT
Em outra ocasião eu falava sobre a hereditariedade do mito e suas implicações no mundo atual dos valores e do jurídico. Prossigo no raciocínio com novos exemplos.
Tudo parece ter um fio condutor que é explicado por uma crença, e que a reforça. Vejam a escatologia rediviva pelo nazismo e sua fé na superioridade racial, como também na síntese entre milenarismo e utopia perpetrada pelo marxismo. Em ambos, é decisiva a batalha final entre os Bons (a "raça ariana" ou o "proletariado"), cujo decreto providencial nomeará em cargos em comissão os Eleitos, e as hostes do mal (os judeus por antonomásia ou a "burguesia"), tendo-se como resultado um mundo purificado no qual a história se consumará.
A psicanálise mantém o padrão iniciático do regresso à Idade de Ouro. Convidado a penetrar nas profundezas de si mesmo, o iniciado desce aos "Infernos" para combater espectros e monstros. Deve ele sair vitoriosamente das provas, ou morrer e ressuscitar para alcançar uma existência plenamente responsável e aberta aos valores espirituais.
O nudismo e os movimentos a favor da liberdade sexual, embora francamente laicos e explicitamente transgressores, são ideologias nas quais é possível se decifrar vestígios do desejo de restabelecer o estado edênico anterior à Queda, quando não havia rotura entre as beatitudes da carne e as da consciência pecadora.
E o que dizer do tal "culto do automóvel sagrado", nada menos do que uma manifestação profundamente ritualizada, em que se tem o esplendor de cores, luzes, muita grana e a reverência compacta da multidão de adeptos diante das sacerdotisas do templo (as manequins) e dos sumo-sacerdotes (os comerciantes). Poucos gnósticos aguardam com maior ansiedade a revelação de um oráculo do que o adorador de carros aguarda - qual o advento de uma nova forma de salvação -- os primeiros rumores sobre os modelos do ano que vem. Estes devem "sair de linha" o tempo todo, mas não à toa, e sim por um ofício nitidamente litúrgico.
Jornal de Brasília