Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - O homicídio, o porte de arma e suas estranhas conexões processuais

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Daniel Bernoulli Lucena de Oliveira
Promotor de Justiça do MPDFT

É rotina nos tribunais do júri identificar denúncia em que conste tanto o crime de homicídio doloso, como ainda o de porte ilegal de arma de fogo.

Tal prática aumentou consideravelmente a partir da vigência do estatuto do desarmamento, até mesmo em função de um patamar mais gravoso a que o delito foi alçado, implicando incremento também na questão da pena.

Diante disso, é preciso levar em conta uma série de fatores, a fim de não se desviar do devido processo legal e garantir a aplicação do princípio do juiz natural.

Preliminarmente, alguns aspectos merecem reflexão.

Não há como negar que, quando o homicídio é praticado com o emprego de arma de fogo, o porte ilegal (na modalidade nuclear portar) se encontra absorvido (princípio da consunção), já que não há como efetuar disparos, sem a referida arma de fogo.

Ademais, alegar que o acusado portava a arma momentos antes do crime é desarrazoado, pois o fato continua sendo o mesmo. Não fosse assim, ainda caberia um novo crime de porte, pois o acusado ainda carregaria a arma, instantes após o delito.

Portanto, para que se configure uma nova conduta criminosa, é preciso uma ruptura juridicamente relevante, que permita distinguir os crimes.

O delito de porte ilegal de arma de fogo, no entanto, não conta apenas com o núcleo do tipo portar. Há ainda outros, como adquirir, fornecer ou mesmo ocultar [01]. Para tais núcleos, o tipo se torna mais viável, quando posto lado a lado com o homicídio.

Imaginando a existência de provas - ou mesmo indícios - acerca da aquisição ilegal da arma de fogo, novamente faz-se mister o exercício sobre a finalidade de tal ato.

Se a arma de fogo foi adquirida para a prática daquele homicídio, então voltamos a nos referir ao princípio da consunção.

Ocorre que o acusado dificilmente afirmará que adquiriu para matar. Via de regra, dará melhor justificativa para a compra da arma.

Nesse momento, a ruptura juridicamente relevante exsurge e, com ela, a prática do crime de perfaz. Finalmente, encontramo-nos diante de duas condutas: (a) o homicídio doloso; (b) o porte ilegal de arma de fogo, modalidade: adquirir.

Agora, depois de tantas delimitações, resta uma pergunta: afinal, os dois crimes são conexos e podem coexistir em uma mesma denúncia?

De antemão, a conexão (art. 76 do Código de Processo Penal) diz respeito à união, a uma recíproca dependência entre as coisas. Tourinho Filho ensina:

A conexão existe quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas por um vínculo, um nexo, um liame que aconselha a junção dos processos, propiciando, assim, ao julgador perfeita visão do quadro probatório e, de consequência, melhor conhecimento dos fatos, de todos os fatos, de molde a poder entregar a prestação jurisdicional com firmeza e justiça. [02]

As lições da doutrina fazem menção a dois tipos de conexão. Em primeiro lugar, uma conexão subjetiva, que envolve os sujeitos dos crimes e que se dá de acordo com a redação do inciso I do artigo 76 do código processual:

Se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras.

Definitivamente, não se cuida do caso em apreço, pois a referência da denúncia será de um único agente, praticando os dois crimes.

Segue então as modalidades de conexão objetiva. A primeira delas, chamada teleológica ou conseqüencial, é assim tratada pelo código:

Se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas

No porte ilegal de arma de fogo e homicídio doloso, a relação acima descrita poderá até acontecer circunstancialmente, porém não é a regra, o que igualmente afasta essa hipótese de conexão.

Por fim, a conexão objetiva instrumental se dá:

Quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

A doutrina exemplifica essa espécie de conexão da seguinte forma: Caio subtrai um automóvel e o entrega a Mévio que, sabedor da origem do veículo, o vende. De acordo com os juristas, os crimes de furto e receptação, então, são conexos.

É mister destacar que os crimes de porte ilegal de arma de fogo e de homicídio doloso possuem um único vínculo, que é a arma de fogo. Isso, de modo algum, autoriza dizer que a prova de um dos delitos influirá na do outro.

Antes o contrário, se chegamos até aqui, é porque já definimos que a aquisição da arma de fogo se deu por circunstâncias e motivos absolutamente alheios ao do homicídio.

Assim, ao voltarmos ao conceito outrora exposto, o frágil vínculo entre as condutas não aconselha a junção dos feitos, pois, antes de garantir solução una, contribuirá tão-somente para complexidade do processo e dificultará na apreciação final, seja pelo juiz-presidente, seja pelo conselho de sentença.

Melhor é remeter ao juízo competente traslado do processo, para apuração e julgamento do crime residual de porte.

Portanto, apresentadas as vertentes, é de se concluir que: (a) portar arma de fogo para matar é crime único de homicídio doloso; (b) a ruptura juridicamente relevante da conduta permitirá a existência dos delitos de porte ilegal e homicídio; (c) outros núcleos existentes no crime de porte ilegal de arma de fogo admitem mais facilmente tal ruptura; (d) de toda sorte, a conexão entre os crimes em uma mesma denúncia, via de regra, é processualmente inviável.

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Notas

O art. 14 da Lei n º 10.826/2003 dispõe:
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal - vol. 02, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 186.

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