Oto de Quadros
Promotor de Justiça do MPDFT
Na Constituição de 1988, explicita-se a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e, como um dos objetivos fundamentais da República, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Também assegura-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, que é inviolável a liberdade de consciência e de crença e que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa. Proíbe-se à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança e criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Por isso, qualquer observador mais atento fica espantado com a quantidade de feriados religiosos existentes no Brasil. Como se não bastasse, há quem queira mais. Recentemente foi encaminhado para apreciação da Câmara dos Deputados projeto de lei que institui o dia de Santo Antônio de Sant'Anna Galvão e estabelece como feriado nacional o dia 11 de maio deste ano, o mesmo em que o papa Bento 16 vai transformar em santo o Frei Galvão.
Outro projeto em tramitação no Senado, pretende alterar a Lei 662/49, para incluir a terça-feira de Carnaval, a Sexta-Feira da Paixão e a quinta-feira de Corpus Christi entre os feriados nacionais. Justifica o projeto dizendo que, embora sejam das mais populares e tradicionais datas comemorativas e religiosas do País, essas datas não estão incluídas entre os feriados nacionais estipulados por lei.
A Lei 6.802/80 declara feriado nacional o dia 12 de outubro para "culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil". A Lei 9.093/95 expressa que são feriados civis os declarados em lei federal e que são feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, incluída a Sexta-Feira da Paixão. O fato é que, além do Natal e do Ano Novo, que são feriados antigos, há também o Dia da Padroeira do Brasil, que passou a integrar o calendário oficial por iniciativa do general Figueiredo, em plena ditadura militar.
Não se deve falar em "tradição" como se legitimasse a existência de feriados de cunho religioso. Quando a Constituição estabelece a laicidade do Estado, obviamente se considera que a religião é algo que faz parte das "tradições" de um povo. O constituinte abriu mão expressamente dessa espécie de "tradição", justamente em favor da liberdade, da igualdade e da proibição de desproporcionalidades ou preferências no que diz respeito às religiões. Assim, a inclusão de datas religiosas no calendário oficial do País padece de grave vício de inconstitucionalidade.
Mas qual é o caminho para que esses feriados religiosos sejam excluídos do ordenamento jurídico? Talvez um bom meio seja a argüição de descumprimento de preceito fundamental, a ser ajuizada no Supremo Tribunal Federal por um dos legitimados. Está sendo descumprido pelo menos um dos fundamentos do Estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana, assim como um dos objetivos fundamentais, que é o de promover o bem de todos, sem preconceitos e quaisquer formas de discriminação.
Descumprem-se os princípios da igualdade e da proibição genérica de distinção de qualquer natureza, assim como o da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença e o da proibição de privação de direitos por motivo de crença religiosa, já que, havendo um feriado religioso, privam-se de direitos de quem não professa essa religião. Também se descumpre o preceito fundamental que proíbe à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios a criação de distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
Outro caminho, pelos mesmos fundamentos, pode ser a ação direta de inconstitucionalidade, já que a Lei 9.093/95, estabelece a possibilidade de lei municipal criar feriados religiosos em número não superior a quatro e a Lei 10.607/02 repristinou os efeitos da Lei 662/49, que não teria sido recepcionada pela Constituição. Por isso, ambas as leis são passíveis de serem questionadas por ação direta de inconstitucionalidade, assim como as que estão tramitando no Senado, quando virarem lei, já que, embora mereçam, dificilmente serão vetadas..