Rose Meire Cyrillo e Elisabete Amarante
Promotora de Justiça do MPDFT e Juíza de Direito do TJDFT
No livro ‘Os homens que não amavam as mulheres', de STIEG LARSSON, é surpreendente a indicação ali posta de que há um quadro social de violência doméstica contra a mulher em níveis altíssimos e, em pesquisa ao site de busca ‘google' , a violência doméstica contra a mulher na Suécia figuraria entre a 4ª do mundo. Impressionante. Isto porque, pertencente aos países escandinavos, célebres em cultuar e celebrar a igualdade entre os sexos, parece excepcionalmente paradoxal esta estatística. Real, ao que parece. Supõe-se, dentre as razões deste quadro social, a de que os homens suecos diante de uma política igualitária dos sexos, dentro do ambiente doméstico pretendem evidenciar que continuariam superiores às mulheres, até porque a tão dita igualdade teria sido imposta de ‘cima para baixo', ou seja, através de leis que instituíram-na. Da parte das mulheres, estas, segundo os que explanaram a problemática, não informariam, em alguns casos, estarem sendo vítimas dos maus- tratos por não suportarem serem consideradas frágeis no seio de uma sociedade que prima pela força, inteligência, equilíbrio por parte do feminino. Esta é a suma da questão posta.
Ocorre que, dentre as formas de violência doméstica, encontra-se a primeira e mais fácil de evidenciar-se, a corporal. Basta um exame médico-legal para averiguar-se a existência da agressão física perpetrada pela ‘cara metade' da mulher. Isto não ocorre quando se está diante da violência psicológica. Esta mostra-se difícil, tormentosa, no seu deslinde e revelação. Acredita-se que, não obstante ser de difícil comprovação, deva existir uma busca incessante das provas e circunstâncias desta espécie de violência, por parte da que sofre tal desdouro. A violência na psique na mulher ocorre, em essência, quando sua auto-estima é solapada pelas menores aleivosias e picuinhas no universo da convivência doméstica, efemeridades estas que desembocam na conduta que a degrada, bem assim, quando é privada de agir de acordo com a sua própria vontade. Tais aspectos estão umbilicalmente ligados; de uma parte, estão as perversidades diárias por parte de quem seria, ou deveria ser o seu melhor amigo, companheiro para toda uma vida; de outra parte, estão as limitações impingidas sempre no seu atuar, no seu viver; ‘não faça isto', ‘não gosto disso', ‘não quero isto', ‘você está errada nisto'; daí surge aquela que, criada e ‘cultivada' em um universo machista, submete-se a estas violências sem querer admitir ser ela, a vítima, produtora do seu próprio algoz. Há uma simbiose, uma relação viciada, gerada, da parte da mulher, de ser considerada a guerreira, a que suporta tudo, em nome de uma convivência, convivência esta em muitos casos geradora de prole, e por esta prole, dizem, fazem de tudo para suportar tal estado degradante do seu ser, da sua psique. Não é tão somente por conta desta prole, é também por conta disto. Mas, é também por conta desta função que considera socialmente edificante: tentar mudar o outro para que ele saiba, lá no fundo, e venha a superfície, que se trata de uma mulher especial, que com ele está para ‘o que der e vier', ‘até que a morte os separe', ou até que um colapso nervoso ocorra. Nossas ancestrais, e aí entra o nosso amigo FREUD em campo, sempre se gabavam de que haviam agüentado todas as interpéries perpetradas por seus companheiros, maridos, até que um dia eles começaram a mudar, ‘a mudar para melhor', não mais as traíam, não mais as agrediam. Depois até de 45 anos de casados! Viu só, conseguiu-se finalmente ter aquele amigo, companheiro, para o crepúsculo da vida....
E para comemorar o grande feito, será ela agora a enfermeira que cuidará das doenças do corpo do pobre mortal, já que as mazelas da alma, suportou todas com invejável galhardia por quase uma existência inteira......Então surge a pergunta que tanto nos inquieta: que vitória é essa? a de Pirro?
Essa paralisia, resignação com a dor, reflete o medo de romper com o modelo imposto pela sociedade, pela igreja e pela família e, assim, viver fora das crenças e ideologias dominantes, mesmo que seja em nome de sua própria felicidade. Ao fim da hercúlea jornada, a mulher acaba descobrindo que passou pela vida e não viveu (ou viveu em função do outro, tentando mudá-lo, adaptando-se ao seu perfil, cuidando dele, respirando baixo para não incomodá-lo, etc), foi um espectro de ser humano que se deixou esmagar pelo desamor e pelo desrespeito de seu parceiro, o qual, com essas indeléveis e silenciosas formas de violência, fez sucumbir a mulher e o amor que lhe sustentou por toda uma vida. Morreu. E não sabia.
Então, desesperadas e agredidas, num último sopro de vida, auto-estima e fé, as Marias, Beneditas, Imaculadas entre outras tantas vítimas da crueldade de seus ‘a®mados', buscam um ‘braço forte' que as ajudem a romper com esses grilhões, uma ‘mão amiga' que lhe mostre uma nova forma de recomeçar a vida com dignidade.
Sejamos nós esse farol, prontos a dissipar as névoas dessas existências tão sofridas e sombrias......Oxalá possamos nós ensinar ao mundo o que mais precisamos aprender: o respeito ao próximo, à sua diversidade e, à sua liberdade de escolha.
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