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Danielle Martins Silva Aceiro
Promotora de Justiça Adjunta do Ministério Público do DF

É na esfera doméstica, no espaço da intimidade, que reside a maior dificuldade no reconhecimento de atos de violência. Em uma situação de proximidade, dependência (econômica e/ou emocional) e convivência, a violação aos direitos humanos das mulheres nem sempre é compreendida como ato de violência, não apenas por se encontrar disseminada no cotidiano ao invés de ser praticada por um estranho, como também em virtude de certos comportamentos serem considerados normais na vida de um casal, eis que sua ocorrência resta assentada no senso comum social como algo corriqueiro e sem importância.

A banalização da violência doméstica e sua concepção enquanto parte inexorável das relações de casal (o que inclui qualquer tipo de parceria íntima) ou mesmo das relações entre ex-casais são fatores que impedem o reconhecimento dessa modalidade de violência contra a pessoa, tornando-a invisível não apenas para as vítimas, como também para a sociedade e o Estado.

Trata-se de violação que acarreta sérios danos à saúde física e psíquica das vítimas e, como tal, exige intervenção estatal coordenada e multidisciplinar. Para tanto, é preciso evidenciar as agressões domésticas, tornar pública e palpável a relação de poder imposta mediante violência no lar (supremacia do patriarcado).

Neste contexto, a Lei Maria da Penha pretende oferecer tutela integral e diferenciada à mulher vítima de violência doméstica, ora instrumentalizando a repressão penal, ora disponibilizando medidas protetoras, ora oferecendo diretrizes para a implementação de políticas públicas destinadas à promoção da igualdade de gênero. No âmbito processual penal, uma das grandes novidades reside na mudança quanto à exigência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal nos crimes de lesões corporais. Com o advento da lei, a titularidade da ação penal passou a ser exclusiva do Ministério Público, independentemente de representação da vítima, desde que presente justa causa para seu exercício (ação penal pública incondicionada).

Trata-se de medida isonômica, pois equiparou estas vítimas de crimes violentos às de crimes como o roubo, o furto e o estelionato, cuja tutela dos respectivos bens jurídicos sempre ficou a cargo do Ministério Público sem qualquer exigência de natureza procedimental.

A prática forense revela que muitas manifestações de desinteresse no prosseguimento de feitos que envolvem lesões corporais têm por referencial uma situação de absoluta submissão e medo. Por isso também não é incomum que, a partir da jurisdicionalização do conflito doméstico, a vítima passe a se valer da lógica da auto-inculpação, que subverte o silogismo da responsabilização criminal inerente a todo e qualquer fato criminoso. A origem do problema deixa de ser as agressões praticadas pelo autor, transferindo-se para a reação da própria vítima que buscou a tutela estatal. A depender do comportamento atual do agressor, a vítima arrepende-se da publicidade da violência, ou melhor, das conseqüências jurídicas dela advindas.

A referida transferência de responsabilidades serve de palco, ainda, para a projeção do direito penal de autor, pois a vítima "condena" ou "absolve" o agressor pelo que ele é (um bom/mau pai e provedor, alguém que deixou ou não de fazer uso de drogas e bebidas alcoólicas etc), não pelo que fez.

Não é mais possível, por dispositivo legal expresso e, recentemente, também em virtude de entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), que o Ministério Público acompanhe o deslocamento de foco realizado pela vítima, promovendo arquivamentos ou ações penais com fulcro nas qualidades ou defeitos do agressor. Não se justifica o tratamento distinto conferido a crimes violentos contra a pessoa apenas em virtude destes ocorrerem no âmbito doméstico ou em prol de uma harmonia familiar fictícia, que se sustenta à custa do solapamento da integridade física e/ou psíquica de um dos envolvidos.

Há que se privilegiar soluções que efetivamente ofereçam às vítimas de violência doméstica o necessário acesso à justiça, o qual compreende uma tutela integral - preventiva, protetiva, assistencial e, se necessário, também repressiva. O acesso à justiça, no contexto de um sistema jurídico que se pretenda proclamador da igualdade e cidadania, pode ser definido como instância a um só tempo garantidora e viabilizadora dos direitos humanos, capaz de realizá-los não apenas no sentido formal (previsibilidade legal) como também material (efetividade dos dispositivos legais para grupos sociais específicos).

Jornal de Brasília

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