Da limitação territorial da eficácia da coisa julgada coletiva em sede de Ação Civil Pública. Uma abordagem crítica à luz do moderno Direito Processual Coletivo e do Projeto de Lei 5.100/20051
Luciano Coelho Ávila
SUMÁRIO:
Notas introdutórias:
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Coisa julgada no regime de composição dos litígios individuais (Código de Processo Civil). Res inter alios acta
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O surgimento dos conflitos sociais de massa (ou macrossociais) e do microssistema integrado de tutela jurisdicional coletiva no Brasil
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Direito processual coletivo: um novo ramo do direito processual civil?
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Coisa julgada no regime de composição dos litígios metaindividuais: sistema de eficácia erga omnes in utilibus e secundum eventum litis:
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Da alteração legislativa do art. 16 da LACP por intermédio da MedProv 1.570/97, posteriormente convertida na Lei 9.494/97. A investida governamental para limitar o espectro de incidência da coisa julgada coletiva;
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Da ineficácia da alteração legislativa do art. 16 da LACP. A plena manutenção em vigor do Código de Defesa do Consumidor e do microssistema integrado de tutela jurisdicional coletiva.
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Da superveniência de Projeto de Lei na Câmara dos Deputados (PL 5.100/2005) restabelecendo a plena eficácia erga omnes da coisa julgada coletiva em sede de ação civil pública
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Considerações finais
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Referências bibliográficas.
Resumo: O presente trabalho tem por escopo analisar os limites subjetivos da coisa julgada em sede de ação civil pública, passando pela redação originária do disposto no art. 16 da Lei 7.347/85, para abordar, na seqüência, as restrições territoriais que lhe foram acrescidas pela Lei 9.494/97, bem como a possível restauração legislativa da plena eficácia erga omnes da coisa julgada coletiva, em face do Projeto de Lei 5.100/2005 (PL 5.100/2005), atualmente em trâmite perante a Câmara dos Deputados, no contexto de uma moderna visão do direito processual coletivo como novo ramo do direito processual civil brasileiro.
Abstract: The current work aims to analyze the subjective limits of the judged subject in location of public civil lawsuit, going through what is stated in the 16th article of the Federal Law number 7.347/85, to address, afterwards, the territorial restrictions added to it by the Federal Law number 9.949/97, as well as the possible legislative restoration of the judged public lawsuit, regarding the bill number 5.100/2005, currently in transit before the Congress, in the context of a modern approach of the collective process law, as a new branch of the brazilian civil process law.
Palavras-chave: Ação Civil Pública – Coisa julgada erga omnes – Limites subjetivos e territoriais – PL 5.100/2005 – Direito processual coletivo.
Keywords: Class Action – Res iudicata erga omnes – Subjectives and territorial limits – Bill 5.100/2005 – Collective procedural law.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
O presente trabalho científico tem por objeto a apreciação e o enfrentamento, através de uma abordagem crítica respaldada no contexto do moderno direito processual coletivo, de tema jurídico ainda não pacificado no âmbito da communis opinio doctorum, consolidado nas maléficas conseqüências, do ponto de vista do interesse social, decorrentes da desastrosa inserção, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, da limitação territorial da eficácia da coisa julgada coletiva em sede de ação civil pública, em virtude da nova redação conferida ao art. 16 da Lei 7.347/85, por intermédio da modificação operada pela Lei 9.494/97.
Dado seu liame umbilical com os mais novos postulados norteadores do direito processual civil brasileiro – aí incluído o direito processual civil coletivo – e com o moderno Estado Constitucional de Direito Democrático instalado nesta República Federativa (art. 1.º, caput da CF/88), referido tema nos concitou a tecer alguns comentários direcionados aos seus aspectos legais e doutrinários, sem prejuízo de eventuais apontamentos jurisprudenciais reputados necessários.
Não obstante a referência ao art. 16 da Lei da Ação Civil Pública (LACP), as reflexões extrapolaram os seus limites, conduzindo-nos a diversos recantos dos modernos princípios processuais concernentes ao movimento mundial pela efetividade do processo e da justiça, bem assim às implicações decorrentes da adoção, pelo legislador constituinte originário, do modelo de Estado de Direito Democrático, projetado para as tutelas jurisdicionais coletivas.
É certo que raciocínios como esses são do tipo conducentes, nalguns momentos, a barreiras aparentemente instransponíveis, erguidas por um conservadorismo de todo maléfico aos interesses da população. Mas nem por isso deve o pensador desistir de encontrar o necessário ajuste dos pontos difíceis de se acomodar no contexto geral da teoria que se desenvolve, mesmo que através do pensamento contrário, da boa crítica, favorável ou não. É assim, ao que se sabe, que aparecem os novos elementos do mundo científico, mesmo que através de pequenos acréscimos ao que já se produziu em determinado campo.
Ficam, pois, as linhas que seguem, a título de despretensioso ensaio no sentido de se oferecer alguma contribuição a mais, por mínima que seja, almejando traçar os contornos científicos de um direito processual civil coletivo moderno e eficazmente protetivo dos interesses macrossociais, já não tão arraigado aos ditames de um modelo individualista de composição dos conflitos sociais, tal como projetado pelo Código de Processo Civil em vigor, datado de 1973.
1. COISA JULGADA NO REGIME DE COMPOSIÇÃO DOS LITÍGIOS INDIVIDUAIS (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL). RES INTER ALIOS ACTA
Haurido nos idos de 1973 na perspectiva de sistematização legal dos mecanismos de resolução dos conflitos humanos interindividuais, o Código de Processo Civil brasileiro em vigor reflete com clareza o tempo em que os litígios civis resumiam-se, basicamente, às demandas de tipo Mévio versus Tício, numa sociedade de formação historicamente individualista, tradicional, patriarcal e conservadora-elistista, cuja preocupação central, em termos de bens jurídicos a serem tutelados pelo direito, recaía sobre o patrimônio.
Prova desta constatação é a leitura meramente gramatical de grande parte dos artigos do antigo Código Civil brasileiro, bem como de alguns dispositivos do Código de Processo Civil, a exemplo das regras positivadas pelos arts. 6.º e 4723 daquele diploma processual, dentre outras, a refletirem uma postura legislativa preocupada, exclusivamente, com a pacificação social dos conflitos de matiz individual.
Daí porque já se poder concluir ab initio, com Leonardo José Carneiro da Cunha, que: “a figura clássica – da qual sempre se revestiu o processo civil – denota uma estrutura procedimental voltada para as lides individuais, de tal sorte que os mecanismos de atuação em juízo são, de regra, destinados ao titular do direito, a quem se confere a legitimidade da postulação judicial.”4
Diante desse contexto nitidamente individualista foi concebida a estruturação do instituto processual da coisa julgada, definida pelo Código de Processo Civil como “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.” (art. 467 do CPC).
Ao enfocar os fundamentos que legitimam a imutabilidade e a indiscutibilidade da sentença passada em julgado, o eminente processualista Enrico Túlio Liebman, citado por Humberto Theodoro Júnior,5 leciona que as qualidades que cercam os efeitos da sentença, configurando a coisa julgada, revelam a inegável necessidade social, reconhecida pela Estado, de evitar a perpetuação dos litígios, em prol da segurança que os negócios jurídicos reclamam da ordem jurídica.
Como adverte o ilustre processualista mineiro, “tão grande é o apreço da ordem jurídica pela coisa julgada, que sua imutabilidade não é atingível nem sequer pela lei ordinária, garantida que se acha a sua intangibilidade por preceito da Constituição Federal (art. 5.º, XXXVI).”6
Ao dispor sobre os limites subjetivos do ato judicial decisório passado em julgado (leia-se quais as pessoas que serão afetadas pela eficácia da imutabilidade do provimento jurisdicional definitivo), previu nosso legislador ordinário infraconstitucional que a sentença, em via de regra, somente produz coisa julgada às partes entre as quais é dada (inter partes), não beneficiando, nem prejudicando terceiros (art. 472 do CPC) – res inter alios iudicara aliis non praeiudicare (a coisa julgada entre as partes não prejudica terceiros).
Assim, somente admitiu o Código de Processo Civil a extensão da eficácia da coisa julgada a terceiros em causas pertinentes ao estado de pessoa, quando houver a citação válida de todos os litisconsortes necessários interessados, como se dessume da leitura da segunda parte do disposto no art. 472, daquele mesmo estatuto processual.
Mencionados limites subjetivos, nos moldes ora delineados, aplicam-se, como é curial, apenas às lides de natureza individual, posto que, no que concerne aos processos envolvendo pretensões de natureza coletiva, a regra deve ser exatamente em sentido contrário, vale dizer, a coisa julgada deve beneficiar todos os titulares de direitos ou interesses (ainda que alheios à relação processual formalizada), quando houver acolhimento do pedido inicial. Tem-se, por conseguinte, a consagração do princípio de que, havendo atendimento do pleito coletivo deduzido na inicial de uma ação civil pública, v.g., há extensão dos efeitos da coisa julgada para beneficiar a quem participou e a quem não integrou o processo.7
É o que se pretenderá demonstrar na seqüência.
2. O SURGIMENTO DOS CONFLITOS SOCIAIS DE MASSA (OU MACROSSOCIAIS) E DO MICROSSISTEMA INTEGRADO DE TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA NO BRASIL
Com o fim do período de ditadura militar e o surgimento de uma democracia no Brasil, sob os influxos de uma nova atmosfera econômica e cultural, se fizeram sentir os primeiros efeitos da conflituosidade de massa, gerando a necessidade de edição de uma legislação processual eficazmente protetiva de bens jurídicos outrora relegados a segundo plano, tais como o meio ambiente, os consumidores, o patrimônio público, histórico, turístico e paisagístico, etc.
Com efeito, como asseverado por Leonardo José Carneiro da Cunha: “a atividade econômica moderna, corolário do desenvolvimento do sistema de produção e distribuição em série de bens, conduziu à insuficiência do Judiciário para atender ao crescente número de feitos que, no mais das vezes, repetem situações pessoais idênticas, acarretando a tramitação pararela de significativo número de ações coincidentes em seu objeto e na razão de seu ajuizamento.”8
Assim, com a eclosão da conflituosidade social, que decorreu especialmente das novas exigências da sociedade massificada, tornou-se premente a regulação e a proteção dos interesses transindividuais (difusos e coletivos).9 O Estado Social de Direito, que já tinha vasto campo de atuação social, teve que se preocupar com outros direitos sociais fundamentais como os relacionados com o meio ambiente, o consumidor, a criança e o adolescente, o idoso, bem como com outras questões complexas, relacionadas com a ordem econômica, em decorrência da mundialização da economia.
Na verdade, o Estado Social de Direito não surgiu de uma verdadeira transformação ou de um verdadeiro rompimento com o Estado Liberal de Direito. Foi ele uma forma de Estado onde se implantou uma política de proteção de alguns direitos sociais, mas sem adaptar o seu sistema jurídico para a tutela dos interesses primaciais da sociedade, especialmente no que tange aos direitos e interesses transindividuais.10
Não podendo ignorar a evolução dos costumes e da realidade social, dinâmica por sua própria natureza, os estudiosos do direito processual brasileiro deram início a uma série de discussões e transformações estruturais daquele segmento do direito público ao longo dos últimos anos, com vistas à sua conformação/adequação aos conflitos macrossociais instaurados na ordem contemporânea, para os quais as soluções apresentadas pelo modelo tradicional de composição dos litígios (Código de Processo Civil) – de índole francamente individualista – afiguravam-se manifestamente insatisfatórias.
Almejando o efetivo resguardo desses direitos e interesses cujos titulares são indeterminados, as legislações de diversos países, de igual modo, criaram ações de perfil coletivo, com diversos propósitos louváveis, assim sintetizados por Roberto Carlos Batista:
“1) facilitar o acesso à justiça; 2) viabilizar uma participação democrática de todas as classes sociais; 3) desafogar o Poder Judiciário da miríade de pretensões contendo a mesma causa de pedir e o mesmo objeto; 4) uniformizar as decisões, imprimindo maior credibilidade à função jurisdicional do Estado, pois a decisão única e com efeitos subjetivos erga omnes ou ultra partes espanca possíveis contradições entre demandas atomizadas, propostas perante diferentes magistrados; 5) equilibrar a contenda judicial, conferindo legitimidade a corpos intermediários que dispõem de mais condições para promover a defesa dos interesses metaindividuais, frente a réus melhor aparelhados para litigar, como grandes empresas e a Administração Pública; 6) diminuir os custos da prestação jurisdicional e do processamento da pretensão; 7) maior rapidez e eficácia dos julgamentos.”11
No Brasil, os reflexos desse movimento mundial pela efetividade de um processo civil coletivo se fizeram sentir, inicialmente, em termos legislativos, com o advento da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública – LACP), diploma de notável e reconhecido avanço para o tempo de sua concepção.
Na seqüência, com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90 – CDC), ao lado do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90 – ECA), estava definitivamente instaurada uma nova era do direito processual civil brasileiro, cujas expectativas começavam a se voltar para a sistematização de um modelo de processo coletivo direcionado à pacificação social dos litígios metaindividuais.
Aliás, não foi por outro motivo que a doutrina especializada convencionou denominar a relação de interação entre os dispositivos da LACP (art. 21) e do CDC (art. 90) como verdadeiro microssistema integrado de tutela jurisdicional coletiva, cujo objetivo primacial foi o de propiciar a gênese do processo de regulamentação jurídica dos conflitos de interesses coletivos, na busca de uma tutela jurisdicional adequada.
Percebe-se, sem muito esforço, que mencionadas inovações legislativas apresentaram-se como consectário lógico e natural da evolução cultural de uma sociedade recém-democratizada, que passava a assimilar a noção de participação popular em todas as esferas de governo. Não só por isso, no entanto, mas também porque “o desenvolvimento da ciência processual terminou por demonstrar que o sistema do Código, marcadamente individualista, deixava descobertos ou insuficientemente protegidos interesses que se caracterizavam por não se vincularem a ninguém em especial, mas a atingir grupo de pessoas indeterminadas, cuja composição plástica variava rapidamente de momento a momento.”12
3. DIREITO PROCESSUAL COLETIVO: UM NOVO RAMO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL?
Atentos a referidas transformações sociais, e como fruto da evolução científica do direito processual, alguns autores passaram a sustentar, inclusive, a existência de um direito processual coletivo como novo ramo do direito processual civil brasileiro, a exemplo do ilustre promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais, Gregório Assagra de Almeida, para quem: “O que se verifica é que hoje já se tornou quase pacífico, na doutrina de vanguarda nacional e estrangeira, que é impossível tutelar os direitos coletivos por intermédio das regras do direito processual civil clássico, as quais foram concebidas por uma filosofia liberal-individualista arraigada, ainda, no século XIX.
(...) Como se vê, somente o estudo separado do direito processual coletivo como ramo próprio do direito processual poderá abrir caminhos para a verdadeira tutela dos direitos ou interesses coletivos. Caso contrário, a ingerência de normas estranhas à sua finalidade e a falta de sistematização desse importante campo do direito impedirão a devida proteção, pelo Estado-Jurisdição, dos direitos fundamentais da sociedade e dificultarão a efetivação do Estado Democrático de Direito consagrado no art. 1.º da Constituição Federal e, por via de conseqüência, a diminuição dos grandes problemas sociais. Somente uma nova postura interpretativa com uma teoria geral própria para o direito processual coletivo poderá fazer com que o direito processual cumpra a sua verdadeira função social como instrumento de realização de justiça e de transformação positiva da realidade social.
E mais: de nada adianta a criação de instrumentos poderosos, como as ações coletivas e a própria coisa julgada coletiva, se o instrumento formal existente de viabilização de uma e de outra não é capaz de dar efetividade a esses novos institutos, seja pela falta de princípios ou de regras interpretativas específicas, seja pela inexistência de estudos que desenvolvam a concepção de tutela jurisdicional coletiva por intermédio de método e objeto próprios.”13
No mesmo sentido, pondera Nelson Nery Junior:
“(...) os institutos ortodoxos do processo civil não podem se aplicar aos direitos transindividuais, porquanto o processo civil foi idealizado como ciência em meados do século passado, notavelmente influenciado pelos princípios liberais do individualismo que caracterizaram as grandes codificações do século XIX. Pensar-se, por exemplo, em legitimação para a causa como instituto ligado ao direito material individual a ser discutido em juízo, não pode ter esse mesmo enfoque quando se fala de direitos difusos, cujo titular do direito material é indeterminável.”14
Referidas constatações não permaneceram imunes de observações pelo jurista Adroaldo Furtado Fabrício, consoante o qual os mais importantes e desafiadores problemas do jurista, atualmente, decorrem do fenômeno da massificação. Sustenta este autor que populações inteiras, que estavam às margens do comércio jurídico, começam a participar com interesse dos assuntos coletivos. E assim conclui o emérito jurista, citado por Gregório Assagra de Almeida:
“Enquanto isso, os grandes lineamentos do Direito Processual Civil, seus institutos basilares e seus conceitos fundamentais permanecem estáticos, como que indiferentes a essa profunda transformação da realidade social. Aqui e ali, tímidas adaptações procuram compatibilizar esquemas obsoletos com as novas necessidades, mas sem impedir a aproximação inexorável do colapso que só uma revolução igualmente profunda pode obstar. Quando o agigantamento do usuário faz romper o tecido e rebentar as costuras, já não é o caso para remendos ou ajustes: a roupa toda tem de ser substituída.”15
Como se extrai da leitura atenta das lições até aqui referidas, encontra-se consolidado forte movimento doutrinário liderado por vozes autorizadas do direito processual civil brasileiro, no sentido de que as ações civis envolvendo pretensões de natureza coletiva devem submeter-se a regras, métodos e princípios próprios, todos com natureza e dignidade constitucionais. A bem da verdade, o propugnado direito processual coletivo não constituiria um novo ramo do direito, mas um novo ramo do direito processual, com natureza de direito processual constitucional-social.16
Aliás, conforme advertência de Willis Santiago Guerra Filho, os interesses coletivos em geral, mesmo tendo abrigo em normas com dignidade constitucional, não vêm recebendo o devido tratamento pelas normas regulamentadoras de direitos, mas nem por isso seria admitida a sua violação. Incumbirá ao Poder Judiciário a realização dos direitos fundamentais chamados de terceira geração (direitos de solidariedade) ou precisamente direitos sociais, econômicos e culturais, que estariam relacionados, v.g., com o meio ambiente e com outros bens jurídicos da comunidade.17
Feitos esses apontamentos de ordem preliminar, convém assinalar, para logo, que, no âmbito das tutelas jurisdicionais coletivas, os institutos processuais estruturais da ação, da jurisdição, do processo, da defesa e da coisa julgada, assumem características e contornos específicos, que servem para distinguir o direito processual coletivo do direito processual civil de índole clássica.
Para o propósito do presente trabalho, assume destacada relevância a questão atinente à coisa julgada coletiva, notadamente quanto aos seus limites subjetivos em sede de ação civil pública, como se passará a demonstrar na seqüência.
4. COISA JULGADA NO REGIME DE COMPOSIÇÃO DOS LITÍGIOS METAINDIVIDUAIS: SISTEMA DE EFICÁCIA ERGA OMNES IN UTILIBUS E SECUNDUM EVENTUM LITIS
Em sua redação originária – inspirada na Lei da Ação Popular (art. 18 da Lei 4.717/1965)18 – preceituava o art. 16 da Lei 7.347/85 (LACP): “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.”
Como se observa da leitura do dispositivo legal em comento, a eficácia da coisa julgada em matéria de ação civil pública não ficava circunscrita às partes formais do processo, abrangendo todas as pessoas lesadas (erga omnes) que se encontrassem na mesma situação fático-jurídica objeto da pretensão coletiva deduzida em juízo, independentemente do Estado ou região em que residissem, desde que concretamente afetadas pelo dano cuja ação civil pública almejava ressarcir ou reparar – os denominados danos regionais ou nacionais.
No magistério do ilustre processualista Hugo Nigro Mazzilli: “Se os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo abrangessem classicamente apenas as partes do processo onde foi proferida, então qualquer co-legitimado poderia propor novamente a mesma ação, discutindo os mesmos fatos e fazendo o mesmo pedido. Se a coisa julgada no processo coletivo não ultrapassasse as barreiras formadas pelas próprias partes formais do processo de conhecimento, de que adiantaria formar-se um título executivo que não iria sequer beneficiar os lesados individuais, que não foram parte no processo?”19
Dessa forma, a Lei da Ação Civil Pública estabeleceu um novo mecanismo para a coisa julgada coletiva, de acordo com o resultado final do processo (ou seja, secundum eventum litis), assim sintetizado por Mazzilli:20
“a) Em caso de procedência, haverá coisa julgada. Assim, o comando contido na sentença será imutável erga omnes, ou seja, contra todos. Isso significa que nem as próprias partes da ação civil pública originária (co-legitimado ativo versus causador do dano) nem quaisquer outros co-legitimados ativos, nem quaisquer outras pessoas, tenham ou não tomado parte efetiva no processo de conhecimento, – ninguém, enfim, poderá discutir em juízo, novamente, a mesma questão;
b) Em caso de improcedência por qualquer motivo que não a falta de provas, também haverá coisa julgada. Assim como na hipótese da letra anterior, o decisum será imutável erga omnes;
c) Em caso, porém, de improcedência por falta de provas, não haverá coisa julgada; outra ação poderá ser proposta, com base em nova prova. Essa nova ação, fundada em nova prova, poderá ser ajuizada pelo mesmo autor que tinha proposto a ação de conhecimento anterior, ou por qualquer outro co-legitimado.21
Essa novel sistemática introduzida para as ações civis públicas e coletivas, no que pertine aos limites subjetivos da coisa julgada, representava justamente o que hoje se espera da função jurisdicional, sob a ótica da instrumentalidade-efetividade. A resposta judiciária, no limite do possível, se mostrava plena e exauriente, resolvendo a um só tempo o processo e a lide coletivos; e, de outro lado, promovia a maior coincidência possível entre o direito material (lesado ou ameaçado) e a reparação/prevenção resultante do cumprimento do julgado.
Aliás, como bem enfatizado por Rodolfo de Camargo Mancuso: “Isso é particularmente verdadeiro no campo da ação civil pública, tendente a uma sentença de cunho cominatório (art. 11 da Lei 7.347/85), assim adequado à efetiva tutela de valores como meio ambiente, consumidor ou patrimônio público. Diz Pedro da Silva Dinamarco: ‘Essa sistemática está em plena sintonia com a preocupação do processualista moderno em busca do aprimoramento do sistema processual e a efetividade do processo, tendo na máxima chiovendiana um verdadeiro slogan: Na medida do que for praticamente possível o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter.’”22
Recorde-se que, dentre os principais objetivos das ações de perfil coletivo, citados alhures, estavam os de 1) facilitar o acesso à justiça; 2) viabilizar uma participação democrática de todas as classes sociais; 3) desafogar o Poder Judiciário da miríade de pretensões contendo a mesma causa de pedir e o mesmo objeto; 4) uniformizar as decisões, imprimindo maior credibilidade à função jurisdicional do Estado, pois a decisão única e com efeitos subjetivos erga omnes ou ultra partes espanca possíveis contradições entre demandas atomizadas, propostas perante diferentes magistrados; 5) equilibrar a contenda judicial, conferindo legitimidade a corpos intermediários que dispõem de mais condições para promover a defesa dos interesses metaindividuais, frente a réus melhor aparelhados para litigar, como grandes empresas e a Administração Pública; 6) diminuir os custos da prestação jurisdicional e do processamento da pretensão; e 7) maior rapidez e eficácia dos julgamentos, entre outros.
E para a viabilização de referidos propósitos no plano da concretude, o novel mecanismo da coisa julgada coletiva implementado pelos diplomas legais mencionados (Lei da Ação Civil Pública, Código de Defesa do Consumidor, etc.) – mediante a extensão erga omnes de seus efeitos e o aproveitamento ou transposição in utilibus do julgado coletivo às pretensões individuais de idêntico objeto –, apresentava-se, inelutavelmente, como seu principal alicerce.
4.1 Da alteração legislativa do art. 16 da LACP por intermédio da MedProv 1.570/97, posteriormente convertida na Lei 9.494/97. A investida governamental para limitar o espectro de incidência da coisa julgada coletiva
Lamentavelmente, no entanto, a redação originária do art. 16 – LACP sofreu inadvertida alteração introduzida pelo art. 2.º, da Lei 9.494/97, que teve por escopo nítido o de restringir o espectro de incidência territorial da sentença coletiva passada em julgado apenas aos limites territoriais da competência do órgão jurisdicional prolator do decisum.
Confira-se, a propósito, o teor da nova redação conferida ao dispositivo em comento, verbis:
“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” (grifos nossos)
Preliminarmente, contudo, é de se constatar que mencionada alteração legislativa fez tábula rasa do devido processo legislativo preconizado pelo Texto Constitucional em vigor, posto que regulada a matéria em pauta, naquela ocasião, por intermédio de medida provisória flagrantemente desprovida dos requisitos da relevância e urgência (art. 62 da CF/88).
A propósito, bem sustentou Mazzilli que a Lei 9.494/97: “não foi originária do Congresso Nacional nem decorreu de regular projeto de lei do Poder Executivo. Ao contrário, a norma proveio da conversão em lei da MedProv 1.570/97, que alterou um sistema que já vigia desde 1985 (LACP, art. 16) ou ao menos desde 1990 (CDC, art. 103), e, portanto, desatendia claramente o pressuposto constitucional da urgência, em matéria que deveria ser afeta ao processo legislativo ordinário e não à excepcionalidade da medida provisória (CF/88, art. 62, na sua redação anterior à EC 32/2001).”23
A par desse flagrante vício de inconstitucionalidade formal decorrente da indevida regulação da matéria através de medida provisória que inobservou o requisito da urgência constitucional, a doutrina especializada apontou um sem-número de incongruências e ilegalidades na alteração legislativa em apreço, insurgindo-se com toda a veemência contra a modificação operada no art. 16 da LACP.
Com efeito, na pertinente observação de Roberto Carlos Batista: “A malfadada Lei em comento rompe com toda a filosofia das ações coletivas. (...) O contexto da sociedade de massa, pós-moderna, passou a fragilizar sobremaneira os indivíduos e a exigir, do aparato jurídico, mecanismos de proteção de direitos tradicionais e, acima de tudo, de direitos emergentes da conflituosidade, pois, como frisa Starling e Oliveira (2001, p. 25): ‘O risco da eclosão de distúrbios e a possibilidade de se quebrar o já frágil e tênue equilíbrio social é crescente e preocupante.’
(...) A coisa julgada é talvez o ponto mais importante para garantir esses objetivos listados, como consagra a doutrina: ‘Tratándo-se de los denominados nuevos derechos e intereses (ambiente, consumidores, publicidad correcta, etc.) donde se pueden visualizar intereses o derechos difusos, se llega a decir por algunos que la extensión ultra partes o los efectos erga omnes Del pronunciamiento jurisdiccional constituye una imprescindible garantia de efectividasd de la tutela, por corresponder la posición jurídica objeto de la tutela a uma situación de relevância general y, por tanto, no circunscrita a la relación procesal instaurada inter partes.” (Salamanca, 2003, p. 297).24
E assim arremata com aguda perspicácia o autor: “A inovação do legislador se dirigiu exatamente no sentido inverso, ou melhor, na contramão de todas essas preocupações que justificam a razão de ser das ações coletivas. Ao tentar reduzir a eficácia subjetiva do julgado ao espaço territorial da competência do juízo prolator da sentença coletiva, o legislador nega todos aqueles propósitos e exige a propositura de ações civis públicas, quantas forem as competências territoriais em uma dada região ou em todo o país, conforme o dano seja regional ou nacional. Assim agindo, suscita uma pletora de processos, arrisca a concorrência de decisões antagônicas, com desgaste do Poder Judiciário; aumenta os custos operacionais para os órgãos públicos e para os litigantes; cria situações inusitadas, por desconsiderar a natureza do bem jurídico protegido, muita das vezes indivisível.”25
Nessa mesma trilha, após enumerar os inconsistentes argumentos da corrente minoritária – que sustenta a legalidade da alteração legislativa promovida no art. 16 da LACP –, Rodolfo de Camargo Mancuso, num verdadeiro apanhado geral dos fundamentos expendidos pela corrente majoritária, assinala com maestria: “Todavia, parece que a maioria dos doutrinadores vem se postando contrariamente à inovação trazida ao art. 16 da Lei 7.347/85 pela Lei 9.494/97, cuja etiologia vem assim explicada por João Batista de Almeida: ‘Objetivou-se, desse modo, fazer com que a sentença, na ação civil pública, tivesse seus efeitos limitados à área territorial da competência do juiz que a prolatou, com isso afastando a possibilidade de decisões e sentenças com abrangência regional e, principalmente, nacional. Ou, por outra, o governo usou o seu poder de império para alterar a legislação da maneira como lhe convinha, desnaturando a principal marca da ação coletiva – a coisa julgada –, tão logo se sentiu ameaçado com algo que não deveria incomodá-lo: a defesa coletiva de cidadãos, contribuintes, funcionários públicos etc.’26
“Com efeito, indaga José Marcelo Menezes Vigliar: ‘Se o interesse é essencialmente indivisível e o da modalidade difuso, como limitar os efeitos da coisa julgada a determinado território? Ainda: quando o dano for de proporção tal (como por exemplo o chamado dano regional, ou seja, aquele que atinge mais de uma comarca ou até mais de um Estado-membro) que vá além dos limites de uma determinada comarca (foro, já que é a isso que a medida deve estar se referindo), como se aplicaria o preceito?’27
“A seu turno, Francisco Antonio de Oliveira viu naquela alteração legislativa ‘um retrocesso inominável, uma vez que se pretende dar à ação civil pública o mesmo tratamento que é dado à defesa dos direitos individuais. É evidente que os interesses transindividuais não poderão ter seus efeitos circunscritos à base territorial, sob pena de neutralizar os efeitos da ação civil pública, visto que, v.g., num derramamento de petróleo em Santos, com o espraiamento dos danos por todo o litoral, a ação deveria ser proposta em cada comarca, o que é um absurdo, com a possibilidade de sentenças diversas sobre o mesmo tema.’28
“Também Nery & Nery deploram, em termos incisivos, o equívoco em que incidiu o legislador, observando que ‘o Presidente da República confundiu limites subjetivos da coisa julgada, matéria tratada na norma, com jurisdição e competência, como se, v.g., a sentença de divórcio proferida por um juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal continuasse casado! (...) Confundir jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada é, no mínimo, desconhecer a ciência do direito.’29
“(...) Tudo assim conflui para que a resposta judiciária, no âmbito da jurisdição coletiva, desde que promanada de juiz competente, deva ter eficácia até onde se irradie o interesse objetivado, e por modo a se estender a todos os sujeitos concernentes. Assim se dá, por conta do caráter unitário desse tipo de interesse, a exigir uniformidade do pronunciamento judicial.
“Por exemplo, se o pedido numa ação civil pública em curso perante juiz competente (Lei 7.347/85, art. 2.º, c/c CDC, art. 93) é de que se interdite a fabricação de medicamento tido como nocivo à saúde humana, a resposta judiciária (inclusive como liminar) não pode, a nosso ver, sofrer condicionamento geográfico, seja porque não caberia falar numa ‘saúde paulista’, distinta de uma ‘saúde gaúcha’, seja porque, de outro modo, se teria que admitir a virtualidade de outra ação coletiva concomitante, em outra sede, ao risco da prolação de julgados porventura contraditórios, gerando caos e perplexidade.
“(...) No presente estágio evolutivo da jurisdição coletiva em nosso país, impende compreender que o comando judicial daí derivado precisa atuar de modo uniforme e unitário por toda a extensão e compreensão do interesse metaindividual objetivado na ação, porque de outro modo esse regime processual não se justificaria, nem seria eficaz, e o citado interesse acabaria privado de tutela judicial em sua dimensão coletiva, reconvertido e pulverizado em multifárias demandas individuais, assim atomizando e desfigurando o conflito coletivo.”30
Dificuldade inexiste em se aquilatar, nesse contexto, que a desastrosa alteração legislativa promovida no art. 16 – LACP, motivada por indevida ingerência governamental em seara nitidamente atribuída ao Poder Legislativo, acarretou, inequivocamente, lamentável interrupção do processo de evolução científica do direito processual civil brasileiro, no que pertine aos extraordinários benefícios, dos pontos de vista jurídico, político, econômico e social, que adviriam das sentenças coletivas revestidas de plena eficácia erga omnes, sem limitações territoriais ilógicas e assistemáticas.
Como cediço, um dos fatores que atualmente mais contribui para a morosidade da prestação da tutela jurisdicional perante os tribunais de 2ª e 3ª instâncias diz com a proliferação de demandas individuais com objetos absolutamente idênticos, no mais das vezes vinculados a danos ou pretensões sem condicionamento geográfico (danos de projeção regional ou até mesmo nacional), que veiculam interesses essencialmente indivisíveis, como aqueles citados nos exemplos supra transcritos.
Ora, a limitação territorial da eficácia da coisa julgada coletiva introduzida por intermédio da Lei 9.494/97, que conferiu nova redação ao art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, a par de contribuir para o aumento significativo e desnecessário do número de demandas individuais em tudo idênticas perante os tribunais brasileiros, findou por desconsiderar uma das principais virtudes do direito processual coletivo, consolidada na possibilidade de resolução uniforme e integrada de situações jurígenas massificadas e indivisíveis, de projeção regional e até nacional.
Como se isso não bastasse, a alteração legislativa em apreço fez eclodir ambiente de absoluta instabilidade e insegurança jurídica, com a possibilidade (já concretizada em várias oportunidades noticiadas pela mídia) de tomada de decisões díspares sobre o mesmo tema submetido ao crivo jurisdicional, com inevitável desgaste da imagem do Poder Judiciário.
E não é só: ao impor, ainda que indiretamente, a necessidade de propositura de demandas individuais com idêntico fundamento em detrimento da solução coletivizada (mediante pronunciamento judicial único) dos conflitos de massa, a Lei Federal 9.494/97 – em plena era na qual se propugna, num fenômeno mundial pela efetividade e universalidade da jurisdição, a facilitação do acesso à ordem jurídica justiça (sobretudo à população mais carente) –,31 paradoxalmente e na contramão da história do direito processual, acaba por subordinar o acesso ao Poder Judiciário à abastança, conferindo odioso privilégio às classes sociais mais favorecidas economicamente.
Dito em outras palavras, ao imprimirem restrições ao espectro de incidência territorial dos julgados coletivos, Governo Federal e Poder Legislativo, deliberadamente, preferiram ignorar a própria essência das ações coletivas, esvaziando-lhes o conteúdo e o alcance, naquilo que poderiam produzir de mais relevante para os interesses da sociedade: a coisa julgada erga omnes.
Referidos provimentos jurisdicionais, desde que regularmente revestidos de eficácia regional ou nacional, conforme o caso, seguramente auxiliariam no processo de aprimoramento do respeito dos poderes públicos constituídos pelos direitos assegurados à população em geral e, de outro lado, se prestariam, eficazmente, ao cumprimento de um dos modernos escopos da jurisdição, consubstanciado na educação e conscientização dos cidadãos para a busca de resguardo judicial por seus direitos fundamentais e constitucionais violados (escopo social da jurisdição),32 através dos entes legitimados para a propositura das ações civis públicas, melhor aparelhados em termos estruturais, com fantástica economia de tempo e gastos, viabilizando-se o acesso à justiça, mediante ajuizamento de ação única, de classes sociais menos abastadas e desafogando o Judiciário do sem-número de pretensões deduzidas contendo a mesma causa de pedir e o mesmo objeto, sem prejuízo da uniformização das decisões, imprimindo maior credibilidade à função jurisdicional do Estado.
Não obstante, e infelizmente, referidos benefícios extraordinários oriundos das ações coletivas não tiveram o condão de sensibilizar os Poderes Executivo e Legislativo Federais, o que denota certa imaturidade e desconhecimento da moderna ciência do direito processual por parte de quem mais deveria estar preparado para apreciá-la e discuti-la com a seriedade exigida pelo interesse público que lhe é subjacente.
4.2 Da ineficácia da alteração legislativa do art. 16 da LACP. A plena manutenção em vigor do Código de Defesa do Consumidor e do microssistema integrado de tutela jurisdicional coletiva
Prova maior do completo desconhecimento e ignorância governamentais acerca da sistematização científica do direito processual coletivo e de seu microssistema integrado, formado pela conjugação do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Ação Civil Pública, foi a omissão da Med.Prov. 1.570/97 e, conseqüentemente, da Lei de conversão 9.494/97, no que toca à revogação das normas de remissão à complementaridade entre a Lei 7.347/85 e o Código de Defesa do Consumidor, expressas por este último diploma legal.
Com efeito, não tendo havido revogação das normas do Código de Defesa do Consumidor que tratam da coisa julgada coletiva, aplicáveis em sede de ação civil pública por força do disposto nos termos do art. 21da LACP c/c art. 90 do CDC, a modificação legislativa introduzida no art. 16 da LACP revelou-se ineficaz, tendo em vista a subsistência das normas do Código de Defesa do Consumidor, notadamente seu art. 93.
Daí porque, na visão da melhor doutrina, a inovação legislativa do art. 16 da LACP apresentou-se totalmente inócua e despicienda, vista haja que não teve o condão de alcançar o sistema do Código de Defesa do Consumidor, limitando-se a alterar a Lei da Ação Civil Pública. Tudo porque, como já dito, o sistema da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor é unificado, um verdadeiro microssistema integrado de tutela jurisdicional coletiva por meio do qual ambos os diplomas legais se interagem e se completam, ensejando um todo harmônico (art. 21 da LACP e art. 90 do CDC).
Considerando que o sistema do Código de Defesa do Consumidor sobre coisa julgada é muito mais completo do que o estabelecido pela Lei da Ação Civil Pública, o primeiro não foi alterado pela Lei 9.494/97, além de alcançar inteiramente toda e qualquer defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, passando a reger a coisa julgada em todos os processos coletivos, não só aqueles atinentes à defesa do consumidor, como, de maneira integrada, aqueles atinentes à defesa de quaisquer outros interesses transindividuais (art. 21 da LACP e art. 90 do CDC).33
No ponto, assinala Nery Junior:34 “Esse art. 16 também não tem eficácia porque não alterou um outro artigo que igualmente se refere à eficácia subjetiva da coisa julgada: o art. 103 do Código do Consumidor.”
De igual raciocínio se utiliza André de Carvalho Ramos,35 ao se referir ao art. 93 do CDC: “... quando o art. 93 do CDC estipulou tal divisão de competência pela amplitude do dano, é certo que não quis limitar o efeito do decisum à esfera territorial do juiz ... Assim, a Lei n. 9.494/97 teria que modificar também o art. 93 do CDC, o que não fez. Novamente, fica a Lei n. 9.494/97 inócua.”
Donde se concluir, com Rodolfo de Camargo Mancuso,36 que a aplicação conjunta desses textos (Código de Defesa do Consumidor e Lei de Ação Civil Pública) torna possível demonstrar que, no ambiente processual coletivo, a compreensão e a extensão da coisa julgada não podem ser delimitadas em função de território, que é critério determinativo de competência, justamente por isso empregado em outro dispositivo: o art. 2.º da Lei 7.347/85.
Verifica-se, do exposto, a absoluta ineficácia jurídica da tentativa de restrição governamental ao alcance territorial da coisa julgada erga omnes, posto que não revogado o Código de Defesa do Consumidor nos capítulos atinentes à coisa julgada coletiva e de interação com a Lei da Ação Civil Pública (arts. 90, 93 e 103 do CDC c/c art. 21 da LACP).
5. DA SUPERVENIÊNCIA DE PROJETO DE LEI NA CÂMARA DOS DEPUTADOS (PL 5.100/2005) RESTABELECENDO A PLENA EFICÁCIA ERGA OMNES DA COISA JULGADA COLETIVA EM SEDE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
Após quase uma década de discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da malfadada alteração legislativa do art. 16 da LACP, em prejuízo da evolução científica do direito processual brasileiro,37 ressurge em boa hora, perante a Câmara dos Deputados, a discussão acerca da necessidade do restabelecimento da plena eficácia erga omnes da coisa julgada coletiva.
Com efeito, por intermédio do PL 5.100/95 - de autoria do Deputado Maurício Rands (PT/PE) -, atualmente em regime de tramitação ordinária perante as comissões daquela Casa Legislativa, a coisa julgada em sede de ações civis públicas volta a se revestir de autêntica eficácia erga omnes, podendo projetar seus efeitos para além dos meros limites territoriais da competência do órgão prolator do decisum.
Dentre as justificativas para a apresentação do projeto, o parlamentar relator, Deputado Maurício Rands, alerta para que :“O art. 5.º deste projeto busca, portanto, se convertido em lei, restaurar a redação original do art. 16 da Lei n. 7.347, de 1985, e, desse modo, restaurar o pleno efeito erga omnes das sentenças civis públicas.
(...) Comentando esses ‘ataques’ a ação civil pública por parte do Poder Executivo, ao tempo em que era exercido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, disse Ada Pellegrine Grinover:38
‘Única nota dissonante, nesse cenário, é a atitude do governo, que tem utilizado Medidas Provisórias para inverter a situação, com investidas contra a Ação Civil Pública, tentando diminuir sua eficácia, limitar o acesso à justiça, frustrar o momento associativo, reduzir o papel do Poder Judiciário.’
“É chegada a hora de o Congresso Nacional reagir e restaurar todo o potencial das ações civis públicas, o que muito contribuirá para desafogar os órgãos do Poder Judiciário, na medida em que em um único processo poderão ser resolvidas milhares de demandas.”
Percebe-se, sem muito esforço, que o próprio Poder Legislativo federal está prestes a se retratar de um erro histórico: o de haver chancelado uma medida autoritária e inescrupulosa emanada do Poder Executivo, ao proceder à conversão em lei da hostilizada MedProv 1.570/97. Pior seria, inequivocamente, a perpetuação de um retrocesso inominável.
Assim, para que se espanquem todas as vacilações que hoje gravitam no universo doutrinário e jurisprudencial acerca do tema em discussão, surge em boa hora o PL 5.100/2005, cuja aprovação definitiva perante as Casas Legislativas aguarda em clima de festa a comunidade jurídica.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Espera-se, dessa forma, que a experiência acumulada ao longo dos últimos 10 anos (em sacrifício dos cidadãos de bem, notadamente os desprovidos de necessária educação para a defesa de seus direitos perante o Poder Judiciário), após a edição da malfadada MedProv 1.570/1997, com a assustadora proliferação de demandas idênticas perante os tribunais brasileiros, o ambiente de absoluta instabilidade jurídica com a tomada de decisões judiciais díspares sobre o mesmo tema em todo o território nacional, gerando descrédito na imagem do Poder Judiciário, e outros inúmeros fatores negativos que decorreram da limitação territorial dos efeitos da coisa julgada coletiva, tenha servido como espinhosa lição aos nossos legisladores, trazendo-lhes novos ares de inspiração voltados à aprovação do PL 5.100/2005.
Em assim sendo, retomar-se-á o processo de evolução científica do direito processual civil brasileiro, que deverá estar mais atento ao fenômeno mundial da massificação dos conflitos, sob pena de irresponsável e temerária ignorância das transformações sociais ocorridas nas últimas décadas, nas quais o individualismo típico de uma sociedade elitista, conservadora e patrimonialista do início do século passado foi fortemente abalado por um outro fenômeno mundial, o da socialização da existência humana, cuja manifestação no campo do direito apresentou-se fecunda e intensa (função social do direito), concorrendo para o surgimento dos litígios metaindividuais (ou macrossociais) de interesses.
Somente assim, segundo cremos, estará o Brasil em condições mínimas de dar início – movido por um Poder Judiciário forte e atuante, realmente comprometido e preocupado com a pacificação social dos grandes litígios coletivos instaurados na contemporaneidade39 (em áreas como a tutela do meio ambiente, dos consumidores, dos idosos, das crianças e adolescentes, do patrimônio público, da moralidade administrativa, etc.) –, ao processo constitucional de concretização de alguns de seus princípios e objetivos fundamentais, consolidados na construção de uma sociedade justa, livre e solidária (art. 3.º, I da CF/88), comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (preâmbulo constitucional).
A tutela adequada dos direitos e interesses transindividuais vistos e tratados em sua dimensão social e coletiva, não pode, em hipótese alguma, ficar à margem da exclusiva vontade (ou má-vontade) política, sendo de fundamental relevância a contribuição do Poder Judiciário brasileiro (a ser dada através do pronto restabelecimento e aplicação da eficácia erga omnes da coisa julgada coletiva em sede de ação civil pública, sem limitações territoriais indevidas) para os destinos de um Estado que se pretende de Direito Democrático (art. 1º, caput da CF/88), pelo que deve ser este mais fraterno e socialmente justo.
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LUCIANO COELHO ÁVILA
Especialista em Direito Processual Civil pela UFSC. Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do UniCESPE e de cursos preparatórios para as carreiras jurídicas em Brasília/DF.
“Nestes últimos tempos, importantes correntes da doutrina esforçaram-se para alargar o âmbito de extensão da coisa julgada e, em alguns casos, até por quebrar o clássico princípio, invalidando praticamente os seus efeitos. Não estaria errado quem visse, nessas correntes, um reflexo, provavelmente inconsciente, da tendência socializadora e antiindividualista do direito, que vem abrindo caminho em toda parte.”
Enrico Tulio Liebman, escrevendo nos anos quarenta2.
Revista dos Tribunais nº 861