Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de Justiça do Distrito Federal
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Os cientistas propõem a volta da manipulação de seres humanos. O STF dirá se em algumas de suas fases eles podem ser "descartados"
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NO LIVRO "Admirável Mundo Novo" (1932), o escritor inglês Aldous Huxley imaginou uma sociedade em que as pessoas eram geradas em laboratório, sem a participação do homem ou da mulher. Grupos de indivíduos eram clonados para exercer certas funções. A sociedade era "perfeita" e "higiênica". Os "imperfeitos" eram "descartados".
A fértil imaginação do escritor, que assombrou seus contemporâneos, mostrou-se perfeitamente possível por meio da fertilização "in vitro" (final dos anos 1970) e com a recente clonagem da ovelha Dolly (1996).
Como conseqüência desses perturbadores avanços tecnológicos, o Supremo Tribunal Federal foi acionado para decidir se embriões humanos podem ser manipulados em experiências. É que a Lei de Biossegurança (11.105/05) não só permitiu uma lucrativa e descontrolada industrialização de embriões como a incentivou.
De fato, a pretexto de ajudar casais a ter filhos, laboratórios fabricam milhares de embriões excedentes. Os pais escolhem os que sobreviverão pelo sexo, pela cor dos olhos ou da pele, possibilitando uma preocupante "higienização" genética.
Os cientistas alegam que os embriões excedentes são "descartáveis", pois ficarão congelados ou serão dispensados. Assim, agarram-se ao "fato consumado": os embriões estão congelados e os pais não os querem. Portanto, seria mais justo e digno utilizá-los em prol da medicina.
O argumento, ao estilo de "os fins justificam os meios", já foi usado por cientistas radicais a pretexto de buscar o "bem da humanidade". Exemplo emblemático foi o uso de cobaias humanas pela Alemanha no século passado. Julgavam preferível que as vidas dos "indesejáveis" servissem para ajudar a humanidade a curar doenças, já que seriam de todo modo eliminados nos campos de concentração.
Reagindo aos horrores da Segunda Guerra Mundial, a ONU determinou que a dignidade é "inerente ao ser humano" e o direito à vida é "inalienável", nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Apesar disso, as experiências cruéis continuaram, inclusive nos EUA, pelos menos até os anos 1970, quando os laboratórios tiveram que recuar, em razão da oposição dos defensores dos direitos humanos. A partir daí, voltaram-se os cientistas contra os animais de outras espécies, os quais são até hoje submetidos a intenso sofrimento físico e mental, inclusive pela indústria dos cosméticos. Afinal, alegam, a beleza também contribui para o "bem da humanidade".
Convencidos, porém, de que a utilização de animais não é suficiente, os cientistas propõem a volta da manipulação de seres humanos. Pregam que os embriões e os fetos são "descartáveis". Assim, o STF decidirá se essa "admirável" criatividade dos cientistas burla o direito internacional e a Constituição, ou seja, se o ser humano, em algumas de suas fases, pode ou não ser "descartado".
Ora, a Constituição determina que a dignidade e a vida do ser humano são invioláveis. Não excepcionou fases ou estágios de desenvolvimento da vida. Logo, a vida completa, desde o início, tem dignidade. Não é possível aceitar nenhuma conduta que importe em sua coisificação ou instrumentalização. Isso significa que a Lei da Biossegurança contraria o ordenamento nacional e o internacional. Se fosse possível descartar fases do ser humano em nome do "fato consumado", as pessoas gravemente doentes fatalmente seriam objeto de experimentos, bem como as crianças abandonadas, mediante o consentimento (presumido) dos seus genitores.
Além disso, o Código Civil de 2002 determina que "a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Isso quer dizer que os direitos humanos começam com a fecundação, e não com o nascimento. Esse princípio vigora entre nós desde o Código Civil de 1916. Assim, se o STF acatar a posição dos cientistas, terá que declarar a revogação parcial do Código Civil e da proteção ao nascituro, reconhecendo que ele poderá ser eliminado na fase embrionária e fetal.
Visando poupar o STF desse impasse jurídico, alguns cientistas inventaram uma interpretação "alternativa". Práticos, sustentam que só há vida se o embrião estiver no corpo feminino. Sugerem que suas criações laboratoriais são "coisas". Desse modo, quando estiverem em uso úteros e placentas artificiais, seus "produtos" poderão servir de cobaias, inclusive na fase adulta. Ao negar dignidade humana aos "filhos de laboratório", criam um caminho mais rápido para o "admirável mundo novo".
É claro que a ciência deve fazer todo o esforço para curar as doenças que flagelam o ser humano. Não é aceitável, porém, retroceder ao passado, por mais prático e cômodo que seja esse caminho, sob pena de destruir princípios universais que foram construídos após muito sofrimento e luta.
Folha de São Paulo