Ricardo Wittler Contardo
Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Estamos nos acostumando a ler diariamente notícias a respeito de ações e decisões contra e a favor da venda de bebidas alcoólicas às margens das estradas que cortam o Brasil. São liminares que proíbem e decisões que cassam as proibições. Ora pode, ora não pode vender bebidas nesses estabelecimentos.
Há pouco tempo, o fumo passou por situação semelhante e mudou sua forma de se apresentar e de ser visto. Antes era tido como sinal de maturidade, status e independência. Seu uso começava na tenra adolescência e se prolongava até o fim da vida, muitas vezes por infarto, outras tantas por câncer de boca ou de pulmão. A propaganda do cigarro estava sempre associada à beleza física e ao esporte, sempre com divinas paisagens ao fundo. Alguns menos educados chegavam ao cúmulo de
fumar dentro de elevadores. Hoje parece loucura, mas num passado recentíssimo era permitido fumar em aeronaves em pleno vôo!
Agora, proibido o fumo em bares e restaurantes fechados, shopping centers, cinemas, teatros, elevadores, aeroportos, prédios públicos etc, proibida sua propaganda na televisão, nos jornais e revistas, proibida sua venda a menores de 18 anos, o cigarro é visto por muitos como motivo de privações. E tem que ser assim mesmo: antes do direito de fumar existe o direito de respirar ar puro.
Confesso que tenho muita dificuldade em entender o motivo de tanta resistência quanto à proibição da venda de bebidas alcoólica às margens das rodovias. Na verdade, minha perplexidade é em ver a dificuldade que se tem em qualquer atitude para restrição da venda ou da propaganda do álcool.
Recentemente foi restringida a propaganda das cervejas na televisão. As ditas "bebidas quentes" já haviam enfrentado barreira semelhante. Tal qual o fumo, as mensagens passadas pela publicidade do álcool são sempre ligadas a lindas mulheres, homens saudáveis, todos sempre bem vestidos e aparentando bom nível social e cultural, alegremente bebendo, em ambientes aconchegantes e modernos. Nunca vi mulher feia e homem bêbado em propaganda de cerveja. Nem carro arrebentado nem família chorando a perda do ente querido, que se foi em razão de um acidente que envolveu motorista embriagado. Nem mulher com olho roxo, recém-agredida por seu marido alcoolizado.
A contrapropaganda da bebida está ligada, basicamente, a situações relacionadas ao trânsito. Praticamente nada se diz dos outros tipos de violência potencializados pelo consumo deste tipo de droga lícita. Dirige-se a todas as classes sociais, mas impacta sobremaneira as classes chamadas A, B e C, cujos componentes têm carros próprios.
Profissionalmente, deparo-me todos os dias com casos de violência praticados sob efeito do álcool. Apesar de não ter números precisos, não hesito em afirmar que entre 80% e 90% dos crimes violentos praticados por homens contra suas esposas, namoradas, mães e irmãs são perpetrados depois da ingestão de bebida alcoólica. Seu consumo abusivo é um dos maiores fatores de desagregação familiar.
Crimes desta natureza acontecem com enorme freqüência entre pessoas pertencentes às classes sociais menos abastadas. A bebida é barata (por R$ 2 pode-se comprar um litro de cachaça popular) e encontrada em cada esquina. Os donos dos bares, especialmente nos arredores das grandes cidades, são, muitas vezes, tão dependentes do álcool quanto seus clientes mais assíduos.
Já é um começo proibir o comércio de qualquer tipo de bebida junto às estradas. Creio que o rumo inevitável é a extensão da proibição para vedar integralmente a propaganda televisiva em qualquer horário e a publicidade ostensiva em patrocínio de modalidades esportivas, especialmente as mais populares, como futebol, vôlei e basquete.
É chegada a hora de voltarmos nossas atenções para a propaganda desta droga lícita que é o álcool. Há que se desfazer, com urgência, a vinculação da bebida com o esporte, com a mulher bonita, com o sucesso. Temos que ser ousados e mostrar, sem pudores, o poder destrutivo da bebida. E neste contexto, o Estado não pode continuar a se omitir em assegurar tratamento aos dependentes de álcool. Não adianta o "beba com moderação", em letras mínimas, até porque a cirrose não é moderada, o cérebro é frágil e os crimes de trânsito e domésticos pipocam todos os dias aos milhares, Brasil afora, sem qualquer moderação.
Jornal de Brasília