Renato Barão Varalda
Promotor de Justiça do MPDFT
Diariamente surgem notícias de crianças e adolescentes em situação de risco ou vítimas ou autoras de atos infracionais e cobranças sobre a implementação do ECA, que completa 20 anos de idade. O fato é que ainda há enorme distância entre a lei e a realidade.
Se por um lado, com o ECA a concepção da criança e do adolescente como coisa pertencente ao seu pai foi superada pelo entendimento de que a criança e seu bem-estar devem ser postos acima de quaisquer interesses, até mesmo os de seus pais (por se encontrarem em formação, sob aspectos físicos, emocionais, intelectuais e por não conhecerem totalmente os seus direitos e não serem capazes de lutar por sua implementação, tornaram-se detentores de direitos especiais), por outro, constata-se o crescente aumento da prática de atos infracionais por adolescentes e inúmeras crianças e adolescentes vivendo à margem das mais básicas políticas públicas, como educação (alta porcentagem de evasão escolar entre os adolescentes-infratores), saúde, lazer, esporte, cultura e segurança, diante da falta de vontade política dos dirigentes do país em priorizar recursos orçamentários suficientes à garantia desses direitos fundamentais, mas também em executá-los corretamente.
Embora o ECA tenha especificado em que situações a prioridade absoluta à criança e ao adolescente deva ser observada, determinando preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e na destinação privilegiada de recursos públicos a essas áreas e, muitas vezes, possa se identificar, nas leis orçamentárias, rubricas para a área infanto-juvenil, nem sempre tais recursos públicos são realmente utilizados no decorrer do ano para a finalidade inicialmente prevista, seja porque são remanejados para outras finalidades elegidas pela administração, seja porque simplesmente deixam de ser aplicados.
O desrespeito às determinações do ECA está por todo o lado, como a falta de estrutura material dos conselhos tutelares e o desrespeito à dignidade física e mental do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa.
Quando se verifica falha na criação dos filhos, por não terem recebido os limites e valores necessários a impedi-los de desrespeitar os direitos dos outros, cabe ao Estado a adoção de medidas que visem à reeducação desses jovens infratores, o que deve ser feito para garantir a proteção deles mesmos (ajudá-los a romper a trajetória em meio violento) e da própria sociedade, pois a segurança pública é direito de todo cidadão.
Para cumprir a tarefa de reeducação dos adolescentes infratores, o Estado deve aplicar e executar de forma eficiente as medidas socioeducativas previstas no ECA. Contudo, a realidade é vergonhosa, pois as medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade), quando aplicadas pelo Estado, muitas vezes nem sequer são cumpridas pelos adolescentes infratores e, quando o são, a forma de cumprimento é insuficiente para produzir mudança significativa na vida desses jovens, o que termina por ocasionar um sentimento de impunidade por parte dos adolescentes infratores e contribuir para a reiteração de atos infracionais.
Essa situação tem como consequência a necessária aplicação de medidas restritivas de liberdade (semiliberdade e internação), cuja forma de execução também tem se mostrado inadequada para a ressocialização, já que a maioria das unidades executoras de medidas possui instalações físicas precárias, recursos materiais escassos e recursos humanos insuficientes; bem como não há o atendimento dos centros de internação dos parâmetros estabelecidos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Diante da falta de cumprimento do ECA, o Ministério Público tem ingressado com medidas extrajudiciais e judiciais como forma de forçar o Estado a cumprir suas obrigações. Ocorre que muitas decisões dos tribunais brasileiros ainda se amparam em doutrinas ultrapassadas, sustentando que o Judiciário não pode imiscuir-se na esfera de outro poder, pois, ao analisar o ato administrativo, haveria afronta à teoria da separação dos poderes, ainda que os agentes públicos não estejam cumprindo com os seus deveres legalmente estabelecidos. Há luz no fim do túnel, com algumas decisões esporádicas dos tribunais, determinando ao administrador a observância da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente e, assim, transformando a realidade.
Correio Braziliense