Renato Barão Varalda
Promotor-chefe da Promotoria de Defesa da Infância e Juventude
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) seja uma lei avançada, continua em descompasso com a realidade. É preciso a implantação de políticas públicas eficazes para diminuir a distância, como a garantia das necessidades mais básicas da população infanto-juvenil: saúde, educação e alimentação. Com a situação de exclusão social em que vivem, muitas crianças e adolescentes acabam sendo vítimas de violação dos direitos, o que faz que necessitem não somente de políticas públicas, mas, também, de medidas protetivas (tratamentos psicológicos, toxicômanos, abrigamento, família substituta), cuja aplicação é atribuída tanto ao Conselho Tutelar quanto à Vara da Infância e da Juventude (VIJ).
Além disso, em muitas situações, quando as políticas supletivas não são eficientes, surge a necessidade de aplicação das medidas socioeducativas ante o envolvimento de adolescentes em ato infracional. A aplicação de tais medidas insere-se na competência exclusiva da autoridade judiciária. Constata-se, assim, que a garantia individual e social de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade está vinculada à atuação da VIJ. Cabe ao Judiciário estabelecer a proporcionalidade por número de habitantes, segundo o artigo 145 do ECA.
O Distrito Federal conta com cerca de 2.434.033 habitantes. A população entre 12 e 18 anos representa 8,7% desse número, totalizando 209.546 adolescentes (Datasus, 2007). Por sua vez, a VIJ conta com a atuação diária de três juízes para todo o DF, com audiências realizadas por apenas dois juízes substitutos, ou seja, o atendimento é centralizado em uma única vara, localizada na Asa Norte.
Segundo informações trazidas pelo juiz titular da VIJ, com base no Boletim Estatístico (Ofício nº 30/07), comprovou-se que, em 2006, o número de novos processos distribuídos à VIJ atingiu a marca de 8.355 feitos, totalizando a exorbitante quantia de 17.619 processos em tramitação. Segundo o juiz, "tais números são quase inimagináveis quando comparados com a estatística de uma vara judicial comum, que tem, quando muito, uma média de 2 mil a 2.500 processos em tramitação.
Somente em março de 2007, o número de procedimentos conclusos ao juiz totalizou 3.289 feitos, o que equivale ao montante de 164 processos despachados ao dia, sem contar com as audiências realizadas que ultrapassam 600 por mês". Ademais, há insuficiente número de servidores públicos para executar as funções cartorárias. O cartório conta com 15 oficiais de justiça, cinco servidores com funções administrativas e apenas 22 responsáveis pela tramitação de 17.619 processos.
O Judiciário precisa dar concretude ao princípio da prioridade absoluta e investir na criação de mais varas de infância e juventude e na destinação de mais recursos humanos para suprir a demanda atual. A grande maioria dos processos em tramitação na VIJ do DF envolve a população das regiões administrativas mais pobres. Muitos nem sequer têm dinheiro para pagar as passagens e comparecer às audiências.
Há casos de jovens que são notificados pelo MP para a oitiva, mas não vão por preferirem ser conduzidos coercitivamente (ou seja, em viatura). Em muitos casos, promotores e servidores do MP acabam pagando o transporte dos adolescentes e responsáveis para que retornem às casas. A centralização da vara apena a população das regiões administrativas mais carentes de recursos financeiros, que representa a maioria do público atendido pela VIJ.
O distanciamento da vara inviabiliza o comparecimento dos pais ou responsáveis de adolescentes apreendidos na prática de ato infracional, já que a grande maioria é oriunda de famílias desestruturadas, empobrecidas e residentes em localidades distantes. O mesmo acontece na colheita de provas, quando a concentração dos atos processuais na VIJ, não raro, impossibilita a presença de testemunhas e vítimas para prestarem o devido esclarecimento sobre os fatos. Em muitos casos, a situação acarreta a suspensão dos processos.
Assim, a existência de uma única VIJ, localizada em área nobre de Brasília, dificulta o desempenho das atividades previstas pelo ECA. Por seu lado, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal implantou Juizados Especiais Criminais em quase todo o Distrito Federal, o que ampliou o acesso à Justiça no que diz respeito a delitos de menor potencial. Ao mesmo tempo, o próprio Judiciário viola o princípio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente na medida em que lhes restringe o acesso à Justiça para a garantia da efetivação dos direitos fundamentais. Quando os integrantes dos órgãos superiores da administração do TJDF se sensibilizarem com a situação da população infanto-juvenil do Distrito Federal, soluções poderão ser encontradas para a descentralização da VIJ e, com essa medida, permitir que se observe a prioridade absoluta preconizada pelo ECA.
Correio Baziliense