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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça


Todas as pessoas são medíocres em vários aspectos. Nada impede que um profundo conhecedor de filosofia grega seja uma lástima em trabalhos manuais. Temos visto eméritos jogadores de futebol que desconhecem os rudimentos de sua língua natal. É provável que um oftalmologista de renome somente domine a sua própria especialidade e nada, ou quase nada, além. Isso não é necessariamente um mal; é até charmoso que um próspero empresário seja um desajeitado trompetista ou um dramaturgo diletante.

O que há de errado é o sujeito se omitir em fazer um sincero juízo acerca de suas próprias qualidades, deixando de atribuir a si mesmo um valor (que pode até ser negativo) digno de nota. E mais: não se atormentar com isso, mas se sentir seguro por ser um vulgo, um qualquer perdido na multidão, sem uma identidade, sem responsabilidades decorrentes da trajetória de uma vida única e insubstituível. Nada há de menos aristocrático, no sentido mais puro da palavra, do que renegar sua própria essência em função de detalhes circunstanciais de sua existência, de deixar sua ontogênese diluir-se no “social” que a justifica e a determina. É isso que faz o boi no meio de sua instituição, a boiada, com a diferença que o bicho não teve a oportunidade de ser ou tentar ser algo melhor do que é. Então ele faz o que tem que fazer: rumina. Alguém já disse que, fora da colméia, a abelha não é mais do que uma mosca.

Mas o mais grave é a imposição da vulgaridade. É o achar que não há nada mais grandioso do que ruminar. É a afirmação orgulhosa que tem de prevalecer a qualquer custo (quase sempre pela via do linchamento), não para si, mas para os outros. É o tal fazer justiça com as próprias mãos, ocupando lugares que não foram reservados senão para os que têm direito de fazê-lo – o que não é o caso – e o que vale para todos os cadinhos da vida pública, especialmente a política, a economia e as artes, que nada devem à história, exceto em sua superficie. De forma alguma, o direito está infenso a isso. Por exemplo, o ditado “todos são iguais perante a lei” revela algo inusitado – a sua “igualdade” é engendrada somente sob a égide do direito, não do simples e evidente fato de que você existe – e uma mentira, porque se sabe muito bem que há uns mais “iguais” do que outros; aqui, sim, o mero fato da existência individual não parece ter importância alguma.

É claro que estou homologando o pensamento do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, que há quase um século chamou o fenômeno de “rebelião das massas”. As coisas ficaram ainda mais conspícuas depois de duas guerras mundiais, fascismo, nazismo, stalinismo e outras rebeliões. A brutalidade do império dos edifícios enormes, a autopromoção e as homenagens imerecidas, a “hiperdemocracia”, o controle dos próprios destinos e também dos alheios por pessoas orgulhosas e sem nenhuma capacidade para tanto – tudo isso é notório diante de nossos dirigentes estatais, da fragilidade dos partidos políticos, da qualidade intelectual de muitos dos professores, jornalistas e funcionários públicos, da força “inexplicável” do crime, da antipatia explícita às manifestações místicas, mesmo as oriundas das fontes mais sólidas e eruditas. Assumir-se religioso traz um preço enorme que, por si, convoca a pecha pecaminosa do extremismo e da hipocrisia. Mas os conhecimentos teológicos do “homem-massa” revelam mais que ignorância, revelam ingratidão. Foi ele quem baniu a religião do discurso moral que sustenta o direito, como quem sentencia, como quem molda um debate que nunca compreendeu nem nunca o fará, porque é burro.

Não falo, portanto, de uma mediocridade inevitável, mas de uma “massidade” deletéria: a decadência de um tempo que não é pleno, mas que se sente superior às plenitudes já conhecidas. Ortega y Gasset sabia que esse tempo é superior aos demais e inferior a si mesmo; fortíssimo e simultaneamente inseguro de seu destino; orgulhoso de suas forças como também temeroso delas. Se digo isso não é porque li o autor e com sua doutrina me identifico, mas porque existe uma potência cósmica que, alheia ao que dizem sobre si, inquieta o mar, fecunda a fera, faz florescer as árvores, faz cintilar as estrelas. Falo com Ortega, mas falo por mim e apenas por mim – existe uma ânsia de viver única, que rege este cadáver adiado que procria. E que, no Juízo Final, irá para o Céu ou para o Inferno. Não sei. Mas sei que irá sozinha.

Jornal de Brasília

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