Maria José Miranda Pereira
Promotora de Justiça do MPDFT
O estupro de criancinhas, a pedofilia, é o crime da moda, com frequência assustadora. Os estupros são os crimes mais bárbaros e repulsivos. Estupradores não forçam somente uma relação sexual normal. Costumam praticar toda sorte de perversão, sexo anal, seguido de sexo oral e outros atos libidinosos cruéis. Muitos ainda torturam as vítimas, enfiando objetos nas suas cavidades naturais. As sequelas são terríveis e de difícil cura. É, pois, natural se esperar que os criminosos sexuais sejam severamente punidos. Não são. Somos, culturalmente, uma nação que privilegia os criminosos, necessariamente, em detrimento das pessoas de bem.
O sistema jurídico brasileiro estabelece penas absurdamente suaves para o estupro. Como impera a cultura da pena mínima, raramente se condena um estuprador a mais de sete anos. Já seria muito pouco se ele tivesse de cumprir toda a pena, mas a lei de execuções penais permite cumprir só pequenina parcela dessa pena minúscula, numa completa desproporção com a extrema brutalidade do crime. Vidas dilaceradas costumam custar ao estuprador cerca de míseros dois anos de prisão. São muitos os Josés Admares e Adayltons, de triste notariedade. Nem todos tiram as vidas, mas todos matam a alma, a dignidade sexual, a saúde emocional de suas vítimas.
Os criminosos sexuais, geralmente, não são doentes mentais, não rasgam dinheiro, não fazem mal a eles próprios e têm perfeito discernimento do que é certo ou errado. Têm índole cruel, personalidade distorcida, caráter pervertido. Quando soltos, costumam reincidir na prática do nefando crime. Deveriam, pois, ficar segregados da sociedade por maior tempo.
A impunidade se acentuou absurdamente com a interpretação judicial da Lei nº 12.015/2009, que foi criada com o objetivo oposto, qual seja, o de repressão mais rigorosa dos crimes sexuais. Antes, o Código Penal previa um crime de estupro (artigo 213), quando o criminoso forçava a vítima à conjunção carnal, e outro de atentado violento ao pudor (artigo 214), quando ele praticava também sexo anal, oral e outras barbáries. As penas de cada crime eram somadas. A nova lei, de péssima técnica legislativa, juntou os dois crimes num só artigo. A única interpretação lógica e justa, e que atende aos fins pretendidos, é a de que os crimes só mudaram de endereço, mas continuam distintos e se deve continuar a somar as penas. É o chamado tipo misto cumulativo, conforme entendimento de alguns cultos magistrados, como os doutos ministros do STJ, Felix Fisher e Laurita Vaz, o ilustre juiz Fernando Barbagalo, o desembargador Luiz Gustavo Oliveira, o grande doutrinador Vicente Greco Filho e muitos outros profissionais de inegável saber jurídico.
Muitíssimo, lamentavelmente, diverso é o entendimento do tribunal local e de muitos magistrados que o seguem. Condenam por um só crime, mesmo quando o estuprador pratica vários atos sexuais perversos, além da conjunção carnal. Alegam que a lei atual é mais benéfica, razão por que fazem-na retroagir para beneficiar os anteriormente condenados pelos dois crimes. De regra estão excluindo a metade da pena, ensejando a liberdade de grande quantidade de estupradores e pedófilos. Uma verdadeira festa para os advogados dos criminosos e uma tragédia para as vítimas e a sociedade!
Essa interpretação de crime único é inconstitucional pelo princípio da proibição da proteção deficiente, um princípio moderno, de aplicação recente no Brasil, o qual, de forma singela, se tenta explicar: A Constituição protege o criminoso dos excessos e abusos dos órgãos de repressão do Estado. É o nominado princípio da proibição dos excessos, corolário do princípio da proporcionalidade. Em termos mais leigos, há que se respeitar a proporção entre a gravidade do crime e o tamanho da pena. Assim, não se pode punir o estuprador extrapolando os limites da previsão legal. Muito se tem invocado o Garantismo, um princípio constitucional que garante os direitos fundamentais do criminoso.
Ocorre que não se deve somente garantir que não haja excessos do Estado contra o cidadão, mas garantir igualmente que não haja omissão do Estado, que não haja proteção insuficiente dos direitos fundamentais. A vítima, e de resto toda a sociedade, tem o direito de que o Estado puna suficientemente o praticante de crimes. Se o Estado, por intermédio do Poder Judiciário, ao interpretar a lei dos crimes contra a dignidade sexual, está punindo os estupradores de forma absolutamente insuficiente, essa interpretação é inconstitucional pelo princípio da proibição da proteção deficiente. A interpretação de que a nova lei beneficia o estuprador não está condizente com a Constituição, pois não pode o Poder Judiciário diminuir a proteção aos direitos fundamentais, notadamente o direito à dignidade sexual. Rezemos para que Deus inspire as decisões dos juízes.
Correio Braziliense