Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Sujeito chega em casa e tudo está revirado: cadeiras, mesas, tapetes, quadros, livros, tudo. Ele grita para mulher: "entrou ladrão" ou "fomos assaltados".
A conclusão em si não é rigorosamente uma observação do que o dono da casa vê, mas um julgamento seu. O que ele vê são fatos brutos (as coisas fora do lugar) que, na interpretação do seu conjunto, foram uma evidência, ou uma evidência forte, fortíssima, irrecusável, uma certeza suficiente para que ele telefone para a polícia. Claro, não poderia ter sido outra coisa.
Mas vou complicar um pouco. Passado o susto, com mais calma, ele e a mulher se dão conta de que nada foi levado. Muito pelo contrário, havia dinheiro à mostra, relógios, aparelhos eletrônicos e outros objetos de valor que poderiam ter sido subtraídos, e não foram. Inventariados minuciosamente os bens, os proprietários não dão falta de absolutamente nada. Furto, portanto, não houve. E, se não perceberam que os ladrões fugiram no momento em que chegavam em casa, nem mesmo tentativa.
Para complicar um pouco mais: todas as portas estavam trancadas por dentro. Não havia uma única janela aberta nem o menor sinal de arrombamento. Como e por que os ladrões - ou melhor, os invasores -- entraram? Não faz sentido que arrisquem suas vidas ou suas liberdades apenas para entrarem na casa alheia e bagunçarem os móveis.
Não vou prosseguir nesse suspense, que logo parecerá uma dessas "amazing stories". É melhor dizer que a suspeita inicial estava correta, porque tudo efetivamente apontava para a hipótese de um furto. A questão é que a distância que separa o possível (a hipótese) e o real (o furto) é esquematizada por preconceitos e por uma disponibilidade de dados mais ou menos acessível.
Chega a ser metafórico que uma casa revirada simbolize a própria ordem gnoseológica do sujeito observador. Julián Marías utilizava a expressão "inversão da hierarquia justa", e Ortega y Gasset falava em "ânsia de desumanizar", o que explicarei oportunamente.
Jornal de Brasília