Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de justiça do Distrito Federal
Nas últimas semanas, a sociedade brasiliense tem assistido atônita ao assassinato e mutilação de pedestres e passageiros. Um senhor aposentado, atingido pelas costas ao fazer caminhada, morreu sem assistência do atropelador. Poucos dias antes, outra pedestre atropelada também faleceu. No mesmo período, uma jovem teve as pernas amputadas após ser atingida por veículo. O último episódio ceifou a vida de três mulheres na Ponte JK. Os condutores envolvidos estavam em excesso de velocidade, praticando rachas, embriagados, dirigindo em desrespeito às mais elementares normas de trânsito ou com a vontade pura e simples de ofender a integridade física da população.
Esses tristes casos não diferem da realidade nacional. Confira-se este outro fato recente: promotor de justiça de São Paulo, em estado de embriaguez, matou três integrantes de uma mesma família (pai, mãe e filho) que estavam numa motocicleta, no dia 7/10, e não foi preso em flagrante. Apesar da gravida de, as notícias revelam desesperadora certeza: os acusados ficarão impunes. É que a legislação brasileira é extremamente complacente com os perigosos delinqüentes do trânsito. Quando as vítimas conseguem sobreviver aos atentados, os condutores respondem por lesão corporal culposa, tipificados pela lei como crimes de “menor potencial ofensivo” ou “insignificantes”. Não podem ser presos e, quando muito, pagam uma cesta básica.
Como se não bastasse, muitas vezes a Justiça incentiva a imp unidade, ao sugerir que as vítimas assinem um termo-padrão de desistência, sem permitir que tenham acesso a advogado, ao juiz ou ao promotor de justiça. Elas, geralmente hipossuficientes, acabam retirando a queixa, por descrença, medo do acusado ou desconhecimento de seus direitos. Muitas se rendem à pressão econômica dos criminosos, que oferecem medíocres indenizações em troca do arquivamento do caso. Os infratores saem vitoriosos e debochando da Justiça, enquanto as vítimas, marcadas pelo res to da vida, ficam paraplégicas ou mutiladas.
Quando as vítimas morrem, o resultado é o mesmo. A prisão dos acusados continua proibida e os condenados, quando muito, cumprem “medidas alternativas” de pagamento de cestas básicas ou algumas horas de prestação de serviços à comunidade. Nem mesmo nas raríssimas hipóteses em que a Justiça consegue enquadrar os fatos como homicídio doloso, ou seja, intencional (quando o agente assume o risco de matar), os assassinos são presos. Beneficiam-se dos regimes prisionais semi-aberto ou aberto, que na prática significam a liberdade total.
Essa situação tem gerado e incentivado a criminalidade do trânsito. Ao motorista irresponsável não interessa cumprir a legislação porque sabe que nada lhe acontecerá. Ele despreza a vida das pessoas, utilizando-as como objeto de divertimento radical. A legislação penal, ao beneficiar a elite dos que têm carros, cai numa contradição invencível e discriminatória.
De fato, se um cidadão su rrupiar um par de tênis, às escondidas e sem usar violência ou ameaça, será preso e condenado a uma pena de até oito anos de prisão. Porém, o motorista que marcar o corpo de um pedestre pelo resto da vida jamais será preso ou condenado. É a velha seletividade do direito penal num país liberal-consumista: privilegiar os que têm e controlar os que não têm nada.
Para mudar esse quadro, é preciso coragem e disposição legislativa. O primeiro passo está na exclusão da lesão culposa do rol do s crimes de menor potencial ofensivo. Ora, o ato daqueles que assumem um volante para praticar rachas e manobras perigosas é, sim, de extrema periculosidade. Os resultados funestos não são insignificantes, pois ofendem os bens mais preciosos do ser humano.
Importante, também, abolir a fiança - instituto que só beneficia os que podem pagar - e estabelecer que somente o juiz pode ordenar a soltura, desde que o acusado não coloque em risco a ordem pública. A liberdade não pode depender da s possibilidades financeiras do acusado, mas de sua periculosidade. Em conseqüência, é preciso possibilitar a prisão preventiva, tanto para os crimes de lesão quanto de homicídio culposo, evitando que os reincidentes ceifem outras vidas.
Por fim, é necessário definir de uma vez por todas que circunstâncias caracterizam o dolo no trânsito. Rachas ou embriaguez, por exemplo, podem caracterizar o crime de homicídio qualificado, incluindo-o no rol dos crimes hediondos. Assim, somente a mud ança legislativa e a eficiente atuação criminal, servindo de exemplo positivo, poderá diminuir a criminalidade e a impunidade que destroem a tranqüilidade das famílias atingidas e indignam os cidadãos cumpridores dos deveres.
Correio Braziliense