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Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça

O Direito considera a mentira como uma prática eticamente condenável, e por isso prevê conseqüências, por vezes graves, para os seus produtores e/ou veiculadores. Exemplos disso é o que não falta. No âmbito dos contratos (Direito Civil), as partes são obrigadas a agir com honestidade, sob pena da anulação do acordo. Forjar, por escrito, uma declaração relevante caracteriza um crime chamado falsidade ideológica. Testemunhas que, diante de um juiz ou de um delegado, dizem o que não viram (ou não dizem o que viram) podem responder a processo e até ser presas na hora, ou seja, em flagrante.

Isso mostra que há um certo comprometimento com a boa-fé, sem o qual o nível de desconfiança entre as pessoas que compõem a sociedade – mesmo a sociedade dita aberta, onde seus membros mal se conhecem, pouco se importam uns com os outros e muitas vezes se odeiam – tornaria a necessidade da convivência e da reciprocidade como algo, digamos assim, antropologicamente insuportável. Mesmo a palavra falada continua sendo considerada para diversos fins, e tem suficiente importância se dita por indivíduos que se respeitam a si próprios.

Mas a questão da verdade não é tão simples. Existem sofisticadas teorias sobre o assunto que tentam explicar mais a fundo o seu lado intuitivo, que evidencia o axioma da verdade como um bem a ser incentivado, e a mentira, um mal a ser combatido ou evitado. As crianças aprendem de seus pais que mentir não pode e que o Papai do Céu não gosta, e o embotamento da inocência não deixa de coincidir com a desobediência a essa lição tão elementar e tão profunda. O drama do homem não deixa de ser de um enredo bisonho, quase bobo.

Há uns meses, eu participei de um debate no Supremo Tribunal. Um advogado defendia a tese de que sua profissão era essencial à configuração da democracia e que, no contexto de uma demanda, era ele quem transmitia à Justiça os valores estabelecidos no corpo social. A primeira afirmação é algo que não posso nem quero discutir. Quanto à segunda, fiquei intrigado por saber em que momento isso se dava, que valores eram esses e, acima de tudo, se o advogado poderia mentir em juízo para defender a absolvição do cliente que lhe confiava e pagava os honorários. Se sim, a premiação de seu procedimento seria algo que interessaria somente a interesses privados, que é justamente a essência e a beleza da função do advogado, e o contrário do que ele estava defendendo (pessoalmente, acredito que o advogado deva lutar contra e não a favor da sociedade. Se eu responder a processo, quero que o meu advogado fique do meu lado, e de nenhum outro, e fique até o final).

A resposta que obtive foi a de que "mentir é feio", mas que é "complicado" saber o que é e o que não é mentira. Em outras palavras, existe uma misteriosa feiúra pairando sobre nossas cabeças mas, na prática, saber se o feio é feio mesmo é algo que não nos cabe precisar. Isso seria abstrato demais e não teria como ser conhecido e muito menos controlado. A certeza da sua existência bastaria, e cada um que domesticasse o seu discurso como bem entendesse.

Mas não é assim. A verdade é a comunicação de um juízo que guarda adequada correspondência com a realidade. O chamado conhecimento objetivo (a verdade válida e universal, e não aquela que simplesmente me convém, ao sabor das minhas deficiências cognitivas ou das circunstâncias da vida) exige a submissão da vontade como percepção daquilo que independe dela, e não a soberania da vontade como imaginação a despeito de uma realidade que independe de mim.

Essa tensão pode ser exemplificada pelo diálogo entre o mendigo e o céu, no romance Quincas Borba, de Machado de Assis. O mendigo dormia nos degraus da igreja e acordou com o rumor das vozes e dos veículos. Sentou-se, depois tornou a deitar-se, mas acordado, de barriga para o ar, os olhos fitos no céu, que o fitava também, impassível como ele, mas sem as suas rugas, nem os sapatos rotos, nem os andrajos: um céu claro, estrelado, sossegado, olímpico. Olhavam-se numa espécie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranqüilas, sem arrogância, nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao céu, "afinal, não me hás de cair em cima", e o céu: "Nem tu me hás de escalar".

Jornal de Brasília

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