Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça do MPDFT
Venho a esta tribuna para falar sobre “dignidade da pessoa humana” (DPH), e se usarei o exemplo dos homossexuais é porque o tema me fora sugerido quase que espontaneamente. Não fui bem compreendido no artigo “Crime de homofobia: o Estado sou eu”, aqui publicado, e causei reações cheias de preconceitos contra mim em razão – ou a despeito – disso. Essa reação somente fez confirmar a tese nuclear, a de que alguns preconceitos são válidos e outros não, a depender de quem estiver a postos para controlar ou mudar as leis penais vigentes. Ou seja, a depender de poder político. Confesso, porém, uma acusação que não me foi feita: certo preconceito contra a burrice. Não jogo sujo: se criticar um gay burro, o farei por sua burrice, não por sua gayzice. Sem a premissa de que as minhas premissas foram ao menos compreendidas, todo o “debate” que se seguir não passa de demonstração ritualizada de fúria e estupidez.
Pois bem, DPH é atributo que decorre simplesmente da humanidade do indivíduo. O mero fato de o ente vivo -- e, por extensão, os não mais vivos e os ainda não nascidos, mas já existentes, pois a memória daqueles é, em geral, lembrada com saudade, e a expectativa destes é ansiada com carinho -- ser pessoa humana é suficiente para que se tenha uma dignidade que exige o mais profundo respeito alheio. Não há necessidade de se acrescer coisa alguma à dignidade privada, desde logo infinita e inexaurível, e que já é parte de seu patrimônio moral. Tanto assim que as pessoas entrevadas em uma cama, em vida vegetativa, são também dignas e, por não serem coisas, têm o direito de continuarem vivas, mesmo que isso signifique estorvo financeiro para seus parentes. Também são dignas aqueles por quem ninguém sente inveja, gente feia, doente, pobre, ignorante etc. Isso inclui os burros, mas apenas até o momento em que se queira impor a burrice aos outros.
Nesse caso, o que pode ocorrer é exatamente o oposto: a renúncia ao atributo, a perda do compromisso com a verdade e a responsabilidade – em uma palavra, que tomo de empréstimo de Clastres, o “desnaturamento”. Esse tem sido o comportamento do homem político, que confia, por exemplo, que um Congresso de Deputados lhe diga o que é o direito, que um Tribunal qualquer lhe diga o que é a justiça. Esse “novo homem” parece vítima de um feitiço que consiste em servir alegremente quem o tiraniza. É o pior dos animais, porque os bichos não podem se acostumar a se submeter senão com o protesto de um desejo contrariado. Já o novo homem não tem desejos frustrados ou satisfeitos ou, se os tem, não sabe identificá-los.
Então o conceito de dignidade é, salvo a exceção apontada no parágrafo anterior, inerente ao conceito de pessoa humana. Dizer que alguém é “muito digno” traduz o elogio de que é decente, honrado, sóbrio etc., não a constatação do fato de que é ser humano merecedor de direitos extras (muito pelo contrário, ele será cobrado a assumir funções que não podem ser desempenhadas por qualquer um). Um tipo de julgamento para além do apenas moral, que exprima mais do que admiração ou respeito apaixonado, permite a louvação anódina dos muito bons, mas também o risco da condenação dos pouco ou nada bons, o que tem sido feito exatamente em nome da DPH. A solução final para esse juízo foi vista nos campos de concentração, onde o lixo humano foi descartado. Não há garantias de que esses campos não sejam reabertos no futuro, muito menos quem virá a ser considerado lixo.
Pois no meio do escombro jurídico-eugênico havia também homossexuais, que estão no mesmíssimo nível dos heterossexuais; são ambos igualmente dignos. Essa idéia – que não é nova, mas não é fruto do gênio do “novo homem” – vem da herança da cultura judaico-cristã, segundo a qual cada homem é criatura de Deus, feito à sua imagem e semelhança, que refinou e plasmou o relacionamento intersubjetivo no mundo dito ocidental, o brasileiro inclusive.
O problema é que a dignidade resulta do fato de se ser pessoa humana, não do que se faz com as próprias genitálias. Ter uma preferência, uma orientação, um destino, como queira, que leve à afeição ou ao erotismo com outros do mesmo sexo não é, de nenhuma forma, algo inerentemente digno. Ao contrário, o sexo anal ou o oral podem ser uma delícia desabrida, não ouso duvidar, mas não são louváveis em si. Assim como as relações hetero não são todas igualmente dignas, e nem por isso incestuosos, polígamos, pedófilos, pornófilos, prostitutas, proxenetas, e mesmo inofensivos adúlteros têm reclamado de discriminação. O próprio estereótipo do machão latino, cafajeste, é mais ridicularizado do que emulado. Voltarei em breve ao assunto, em um artigo chamado “O direito de família no Planeta dos Macacos”.
Jornal de Brasília