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Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Muito se fala em “interesse público” (IP), que é a preocupação mais fundamental, ao menos no plano retórico, do governante político, do legislador, do juiz, do promotor. Todos dizem que trabalham em nome do IP, e não das categorias profissionais a que pertencem ou na defesa de conveniências particulares e não raro exclusivas.

Mas se o IP não existir? Ou existir, mas não se permitir ser destacado como algo plenamente identificável, levado à praça pública dos objetos ideais e apontado: eis-te aí? O que há são muitos interesses privados, que não são compartilhados por todos ou sequer por uma larga maioria dos integrantes da sociedade - salvo raras exceções, como o ar puro que todos gostariam de respirar, mesmo os poluidores mais contumazes -, mas que, ao contrário, são heterogêneos e mesmo inconciliáveis. IP será o interesse privado que vier a prevalecer, de um jeito ou de outro, apropriando-se do poder e seus status, privilégios, discursos e paradoxos, agora perfeitamente toleráveis porque legítimos.

Uma divisão básica e um pouco grosseira, mas que ainda se sustenta para começo de conversa é a clivagem entre direita e esquerda. Em regra, a direita é conservadora moralmente (religiosa, pró-família, individualista, aristocrática) e politicamente liberal (Estado intervencionista somente em questões mínimas, como finanças e serviços que não podem ser feitos por cidadãos, os ditos essenciais, estradas, iluminação, esgoto). A esquerda costuma ser liberal moralmente (atéia ou “estado laico”, abortista ou entusiasta da “interrupção da gravidez”, toda a forma de amor vale a pena, e povão) e politicamente conservadora (Estado se mete em tudo em nome do social, da inclusão, e até da felicidade, o que pode abranger cassinos, cotas para “hipossuficientes”, distribuição de comida e de pílulas do dia seguinte).

A democracia urdiu o procedimento que prestigia técnicas matemáticas. Vitórias do 51 sobre o 49 respeitam a um número maior de pessoas que depositaram o voto na urna eleitoral ou que levantaram o braço em um congresso de deputados, forjando-se a interpretação da “vontade geral” dentro de uma divergência possível, de uma discussão em bases aceitas no geral e no detalhe, e cujo resultado se convola em um “compromisso final” (Kelsen).

Para Kelsen, isso é “progresso”, mas esse progresso tem algo de fáustico, de “deslocamento do poder que traz consigo o deslocamento do espírito” (Ortega y Gasset), tal como um corpo que se contempla no espelho, maravilhado com uma figura mefistofélica, saudoso de uma juventude que passou, que tinha mais cabelos e músculos, menos rugas e gordura localizada.

Uma discussão muito séria poderia ser feita em torno da participação minoritária, não na forma de uma existência qualquer, que se contenta em envilecer - por exemplo, na cadeia ou em uma favela dominada pelo tráfico de drogas -, sem nenhuma sensação senão o desprezo ou o desespero diante do tremular da bandeira do vencedor. O elixir paregórico do Doutor Kelsen mais se aplica ao prisioneiro que caminha em direção à cadeira onde será eletrocutado, o que é feito, sim, com as próprias pernas, pois estas obedecem à sua vontade de honrar o “compromisso final” feito com seus carrascos. Eles podem até ir de mãos dadas ou abraçados, trocando juras de amizade.

Afora devaneios solipsistas, é claro que isso é um beco sem saída (não adianta nada o condenado se debater e sair xingando todo o mundo), e então entra a cena o canastrão IP a preencher o vazio do script abominado pela Mamãe Natureza, o que faz com uma gula furiosa, inversamente proporcional à sua verdadeira e bem mais modesta função. O que o sustenta é a força bruta - o direito hoje é uma mistura de fato consumado e força bruta - ainda muito utilizada, embora demodée; há técnicas de convencimento bem mais eficazes, como a hipnose.

O compromisso final de Kelsen funciona como uma “sancta simplicitas” da raça, de uma estupidez que homologa aquele sentido mítico de “doença da linguagem”. Ou então funciona como uma boçal figura paterna de relevância puramente psicológica, conforme engendrada pelo realismo jurídico. Entre independência ou morte, ficamos com os dois: a independência do Estado é a morte da sociedade.

Jornal de Brasília

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