Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça
Podemos pensar em amizade de várias formas, por exemplo, aquela produzida por um estado de espírito sem destinatários específicos, voltada para o plano de atitudes gerais, de modo especial, a negativa: não prejudicar, não fofocar, não escandalizar etc. O "amigo" seria o sujeito disposto a seguir essa "regra de ouro" ou, do contrário, seria ele visto como inimigo e deveria prever e suportar a mesma reciprocidade. Mas o sentido mais corrente da amizade é o que se traduz em uma identificação personalíssima de afinidades, uma união de indivíduos que se querem bem e se vêem como iguais. Dizem que amigo é um parente que se escolhe, mas não é bem assim; também o amigo entra e sai de nossas vidas, sem que sobre isso tenhamos total controle. Parece mais plausível o ditado segundo o qual amizade é como pata de cavalo: uma vez quebrada, nunca volta a ser como era: ab amico reconciliato cave! (cuidado com o amigo depois da reconciliação!).
Seja como for, amizade é um fato do mundo e como tal acaba por trazer certas implicações para o direito. Falarei sobre duas: uma questão de Direito Judicial e outra de Direito Administrativo.
Os códigos de Processo Penal e Civil proíbem que o juiz aprecie uma causa em que um dos litigantes seja seu "amigo íntimo" (ou "inimigo capital"). Tratam-se de exigências muitíssimo fortes, que se enquadram em situações extremamente raras. Como definir o conceito em questão por hipóteses banais como as seguintes? Dois sujeitos que trabalham juntos há nove anos e convivem em extrema harmonia, mas que estiveram na residência um do outro apenas três ou quatro vezes e jamais trocaram presentes de aniversário são amigos ou apenas colegas? Um companheiro de faculdade com quem estudei várias vezes em sua casa e saí muitas noites afora, mas com quem perdi o contato e não vejo há mais de cinco anos é ou foi meu amigo? Para piorar, predicar de "íntima" uma amizade certamente acrescenta um ingrediente que se aproxima muito (ou ultrapassa) do fraternal. Mas em que bases? Precisaria ter a chave da casa? Abrir a geladeira sem pedir? Usar a retrete de porta aberta? Os ingleses acreditam que familiarity breeds contempt ("intimidade gera desprezo"; há idêntico anexim em latim, alemão e italiano, pelo menos). Mas não sonhamos todos com amizades eternas, cúmplices e inabaláveis, do tipo aconteça-o-que-acontecer? E se eu sentir uma vontade irresistível de dar um murro na cara do meu melhor amigo? Isso não fortaleceria a nossa relação, não seria uma prova de amizade?
Talvez o que se queria dizer (o assim chamado espírito da lei) seja simplesmente que o juiz decline da causa se sentir um leve desconforto que seja, por ter ou ter tido com a parte qualquer contato que possa pôr em dúvida sua imparcialidade, seja em consciência, seja para efeito de transparência de sua atuação. Então, as expressões legais foram mal escolhidas, porque exageradas, e a solução do juiz é sua retirada do processo por motivo de "foro íntimo", que não precisa justificar – mas que tampouco enfrenta e resolve o problema.
O outro tema vem do chamado cargo em comissão, que é aquele ocupado por funcionário que não prestou concurso público. Não costuma haver absolutamente nenhum requisito para tal funcionário, mas apenas a condição de que seja o chefe da repartição e/ou que assessore a autoridade para quem trabalha. Algumas decisões judiciais são estritas e reclamam que a relação entre chefe e servidor comissionado deva ser de fidúcia ou confiança; logo, deve haver um contexto de fato propício para que a nomeação seja legítima. Mas outras decisões são estritas demais, e exigem que a fidúcia seja total e absoluta: com o que voltamos à "amizade íntima".
Porém, em quem confiamos nesses termos? Por quem colocamos nossa mão no fogo? A resposta imediata é: a mãe. E depois, mas nem sempre, o pai, o marido, os filhos, os irmãos. Quem tiver avós ou netos também poderia pensar em comissioná-los. Mas essa prática vai justamente de encontro com a antipatia antinepotista que existe em relação ao aparelhamento humano do Estado. Nomear a própria mãe – imaginemos: uma senhora idosa e macilenta – é um ato que desafia até mesmo o senso estético. Mas não é nada despropositado que uma autoridade só confie à própria esposa ou a uma filha tarefas como atender seu celular, controlar sua agenda, participar de reuniões reservadas. E, convenhamos, nomear um sobrinho ou um padrinho de casamento não são situações que se descaracterizam substancialmente entre si como hipóteses de favorecimento pessoal, porque o "x" da questão é o despreparo para o desempenho de funções públicas, não necessariamente em virtude de vínculos consangüíneos.
Jornal de Brasília