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 Ricardo Wittler Contardo
Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal Territórios (MPDFT)


Antes de mais nada, devo dizer que este relato tem parte de realidade e parte de ficção. É parte história, parte estória.

Um rapaz magro, pouco mais de 20 anos, altura mediana, bigode ralo, usando boné, calça jeans e camiseta, entra na sala de audiências acompanhado por uma senhora de uns 45 anos. Suas primeiras palavras foram: "Agora que eu cresci, esse cara não encosta mais a mão nela!", ditas antes mesmo de tomar assento nas cadeiras que rodeavam a mesa retangular.

Achei estranhas aquelas frases, disparadas assim que outro homem entrou na sala onde estávamos. Ele tinha quase 50 anos, não muito alto, compleição física média.

O tal rapaz disse aquelas frases em tom calmo, firme e não muito alto, porém audível o suficiente para que todos tomassem conhecimento. "Esse cara" a quem se referira era o seu pai. A senhora, sua mãe.

Depois das primeiras palavras, o jovem pediu para contar um pouco de sua história. Disse que seria "rapidinho". E continuou: "Ele – referia-se ao seu pai, réu naquele processo que apurava agressão praticada contra sua mãe – sempre bateu nela. Eu cresci vendo minha mãe apanhar (o rapaz dá um suspiro, passa a mão na cabeça da mãe, fazendo um sincero e comovente carinho). Agora eu não deixo mais isto acontecer. Ele sempre chegava bêbado em casa e a espancava".

Com a voz embargada e gotas de suor na testa, prosseguiu: "Neste dia da ocorrência policial, quando cheguei em casa, esse cara (o rapaz se mantinha de lado, sem olhar para o agressor, seu pai) estava de novo batendo na minha mãe. Então, peguei um cabo de rodo e bati na cabeça dele. Com força. Muita força. Como ele não saiu de cima dela, bati também nos braços e nas pernas. Aí sim, consegui salvar minha mãe (disse fazendo outro carinho na mãe, vertendo algumas lágrimas). Depois, pra terminar, ele disse que se eu fosse à Polícia, ele iria me matar. Eu fui. E não vou deixar ele encostar a mão nela de novo!"

A mãe/vítima ficou calada o tempo todo. Cabeça baixa, auto-estima zero, parecendo refletir sobre os anos de violência que enfrentou e sobre como seu filho internalizara a questão.
Relatos como este são comuns, mas sem a carga de emoção que tomou conta de todos (ou quase todos) na sala de audiência, em razão da sinceridade e da simplicidade do interlocutor e, sobretudo, do drama familiar por ele enfrentado.

Pouca gente percebe o alcance das agressões costumeiras no âmbito familiar contra a mulher. Muitos esquecem que os filhos absorvem aquela violência e podem acabar por entender que o certo é a mulher fazer o papel de saco de pancadas, sempre calada, podendo, no máximo, chorar bem baixinho no banheiro, enquanto seca o sangue que escorre das feridas.

Respeitados juristas entendem que se a mulher não quiser, o Estado não pode processar o agressor que a lesionou. Um dos argumentos é a preservação da família, dever constitucional do Estado. Mas, será que o Estado deve mesmo preservar esta "família", composta por um sujeito que agride mulher e filhos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença? Ou será que o Estado deve dar uma chance para que aquela mulher e seus filhos possam constituir outro núcleo familiar, onde as pessoas se respeitem e se amem?

A violência dentro de casa transcende o corpo da mulher e atinge em cheio os filhos. Atinge não só o corpo da mulher. Mata sua auto-estima, fere a alma, corta pela raiz qualquer mínimo equilíbrio emocional.

O olho roxo dói. Muito. Impede a mulher de ir ao trabalho. Enche-a de vergonha de ir à delegacia e ter que relatar seu drama. Não permite que vá à padaria ou à vizinha. Marca para que a mulher tenha as agressões vivas na memória, durante dias, e não mais ouse perguntar por que motivo o marido está chegando àquela hora, bêbado. Nem peça que ele deixe de quebrar as coisas quando chegar em casa, nos seus ataques de fúria. Para o agressor, em boa parte dos casos, a mulher deve se limitar aos serviços domésticos – que devem ser bem feitos – e às funções sexuais, sem questionamentos nem críticas nem comentários nem nada mais.

Já ia me esquecendo... Como falei no começo, uma parte deste relato é ficção. De fato, inventei uma passagem: o rapaz não usou cabo de rodo; o cabo era de vassoura. O resto é tudo verdade. O processo corre em Santa Maria.

Jornal de Brasília

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