Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - Pequena Miss Sunshine

MPDFT

Menu
<

Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça

O filme Pequena Miss Sunshine conta uma história privada que reagita duas categorias de pessoas muito faladas na cultura americana: os winners (vencedores) e os losers (perdedores). O pai, obcecado pelo sucesso, inventa um programa para se produzir vencedores na vida – que é, em verdade, um tremendo fiasco. O filho, um adolescente esquisito, o tio, um homossexual atormentado, e o avô doidão acabam se revelando pessoas sensíveis e solidárias. As reviravoltas do filme mostram que as coisas não são assim tão simples; que vencedores são também losers e vice-versa. A cena final, com a família junta, em uma exibição de dança ao mesmo tempo grotesca e corajosa, resume isso.

O direito também trabalha categorias, que chamamos de "tipos". Os tipos são discriminados em artigos de lei e se aplicam a situações concretas. Por exemplo, aquele que "subtrai, para si ou para outrem, coisa alheia móvel", se enquadra no tipo do furto, e seu autor se submete às penas previstas. Os tipos repressivos são os mais conhecidos, mas há muitos outros, que autorizam, absolvem, declaram ou simplesmente explicam situações. O direito é uma trama tão complexa de tipos, que é impossível contar o seu número. Seria como contar as estrelas do céu.

Pessoas também são categorias jurídicas. Antes de mais nada, são "sujeitos de direitos", o que já revela algo de significativo do nosso tempo histórico, porque nem sempre foi assim, haja vista que os escravos eram coisas. Em seguida, o indivíduo pode ser, simultaneamente, "brasileiro", "marido", "servidor público", "empregador", "credor quirografário", "sujeito passivo", "apelante", respectivamente, nos ramos dos direitos constitucional, civil, administrativo, trabalhista, comercial, tributário e processual.

Há categorias um tanto indesejáveis, como "ofendido", "réu", "apátrida", "silvícola", "idoso" e – aí já é uma questão de gosto – "mulher casada", "negro ou pardo". Nem sempre o sujeito pode escolher as suas condições; é o direito quem se encarrega disso. Mas o direito não trata pessoas exatamente como vencedores e perdedores, como num pacote fechado. No exemplo do parágrafo anterior, o indivíduo pode ser o credor de uma dívida devidamente honrada, e também o contribuinte de um débito fiscal vencido e inscrito na dívida ativa. Pode ser um empregado que tem todas as obrigações trabalhistas respeitadas pelo patrão, e um marido cuja mulher traiu alguns de seus deveres conjugais mais elementares.

Mesmo quando a Justiça impõe ao sujeito um fardo – uma indenização, um despejo, 20 anos de cadeia – ainda assim ele não é um loser porque, pagando o que deve, purga seu ilícito e se restabelece no mundo jurídico. Não é por acaso que o preso é considerado um "reeducando" cujo castigo tem por objetivo "proporcionar condições para a sua harmônica integral social", e um pivete é tratado como um "menor infrator" que está "internado" em um "estabelecimento educacional". Se essas expressões edulcoradas são categorias muito distantes da realidade nua e crua – como todos sabemos que são – ao menos têm um valor simbólico importante, que diz que, por mais improvável que o bandido ou o moleque se reabilitem e se tornem alguém decente, isso não é impossível.

O impossível ocorre é na hipótese da pena de morte, quando o sujeito não tem oportunidade de se regenerar e se deixar "incluir" juridicamente. O que se passa aqui é o que T. Todorov chamava de "paradoxo da compreensão que mata", isto é, o fenômeno do aprendizado da comunicação com o mundo para fins de manipulação em um outro plano, o dos signos humanos. Matando o criminoso, elimina-se exatamente o valor que se pretendia proteger, a vida. Ou entendemos que até a vida do bandido é digna, ou estamos dispostos a julgar as pessoas como quisermos, ou seja, como losers, e abrir os portões dos campos de concentração, lotando-os ao nosso bel-prazer.

Finalizo com E. Cassirer (que fugiu dos campos de concentração): "a cultura humana não é uma coisa tão firmemente estabelecida como julgávamos. Não são eternas nem invulneráveis. Devemos estar sempre preparados para convulsões violentas que podem abalar o nosso mundo cultural e a nossa ordem social nas suas fundações".

Jornal de Brasília

.: voltar :.