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Diaulas Costa Ribeiro
Doutor e pós-doutor em direito,professor universitário,promotor de justiça

O anterior procurador geral da República sustentou que o preceito constitucional da inviolabilidade da vida depende de definição do momento em que ocorre o início dessa mesma vida; defendeu que há vida humana “na e a partir da fecundação”, quando ocorre a fusão genética entre um óvulo e um espermatozóide, retomando discussão que remonta a Santo Agostinho e Santo Thomaz de Aquino. Convencido dessa tese, promoveu Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), aprovada pelo Congresso Nacional após expressiva participação popular, que autoriza a pesquisa com células-tronco de embriões congelados em clínicas de reprodução assistida, remanescentes de casais que se submeteram a tratamento de infertilidade. Na ação, o procurador geral pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidisse quando se dá o início da vida, para, então, julgar a (in)constitucionalidade da lei.

Cabe ressaltar, de início, que a possibilidade de pesquisas com embriões viáveis perdeu o objeto pelo decurso do prazo fixado pela própria lei e por sua regulamentação presidencial. Restam os embriões inviáveis, cujo diagnóstico é um procedimento seguro e apto a identificar impossibilidade de se desenvolverem até o nascimento, tendo um de três destinos certos: o congelamento permanente, o descarte ou a pesquisa científica para fins terapêuticos. O legislador fez opção pela última.

Por isso, pressupor que o julgamento da (in)constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança depende de uma decisão do STF sobre o início da vida é dar, por vias transversas, um xeque-mate no debate sobre o aborto, restando duas alternativas para a conclusão do julgamento: ignorar o pedido de definição constitucional sobre o início da vida e julgar a (in)constitucionalidade da pesquisa com embriões inviáveis, ou estabelecer, com algum ineditismo, marco jurídico-constitucional sobre esse início, tendo por pressuposto fático uma fusão genética sem qualquer vitabilidade.

Ao provocar o STF a responder a essa pergunta, o procurador-geral da República buscou, subliminarmente, argumentos terminativos sobre determinada moralidade do aborto no Brasil, mas que poderá acabar com qualquer perspectiva de sua descriminalização, sem prejuízo de que essa mesma resposta tenha transcendência imediata na aplicação da legislação já existente, reabrindo antiga discussão sobre a constitucionalidade do art. 128 do Código Penal, que há 66 anos permite a interrupção da gravidez nos casos de estupro e de risco de vida para a mulher, passando incólume por constituições outorgadas e promulgadas, todas elas com princípios de inviolabilidade da vida, permitindo concluir que não há imperativos constitucionais absolutos de criminalização, descriminalização, exclusão de ilicitude ou de pena. Há, tãosomente, uma ordem de valores constitucionais não hierarquizados que podem, por decisão do legislador ordinário, ser ponderados e considerados para políticas públicas, inclusive para a política criminal.

Assim, antes de enfrentar a discussão do pedido aparente, o STF terá que afastar o pedido subliminar, sob pena de determinada moralidade sobre o aborto preponderar na discussão que se apresenta apenas como a (in)constitucionalidade da pesquisa científica com embriões inviáveis.

O debate sobre o início da vida sempre foi repleto de religiosidade e já foi enfrentado por várias cortes constitucionais, com relevo especial para países com os quais temos proximidades na comparação e na reflexão jurídica de assuntos comuns. Com constituições idênticas à nossa, tanto no que se refere à inviolabilidade da vida quanto à laicidade do Estado, nenhuma dessas cortes abriu mão de um exercício estrito da razão pública, optando pela afirmação da laicidade do ordenamento jurídico e pela inconveniência de se definir, em sede de controle de constitucionalidade restritivo, o primeiro instante da vida, para não delimitar a própria discricionariedade do legislador ordinário. Mas, também, para não impedir o progresso da ciência, que seria afetado com a afirmação de dogmas religiosos como razões de Estado.

A pesquisa científica deve ser livre para avançar com prudência, não havendo qualquer ameaça à dignidade humana no emprego de células-tronco de embriões inviáveis. Cientistas brasileiros e estrangeiros reconhecem o caráter promissor dessas pesquisas. Além disso, o legislador brasileiro foi cauteloso ao permiti-las com embriões sem potencialidade reprodutiva, fazendo uso do seu poder discricionário, que não contrariou manifestamente a ordem constitucional de valores.

Não havendo atentado manifesto a essa ordem constitucional de valores, não se pode censurar, pela via do controle de constitucionalidade restritivo, a opção normativa do legislador, cabendo interpretá-la conforme a Constituição, presumindo que a lei a respeitou. O uso legítimo da força de uma corte constitucional contra a liberdade científica somente deve ser admitido em situações limite, que não ocorrem na Lei nº 11.105/2005, resultado da ponderação valorativa dos poderes Legislativo e Executivo.

Por fim, não custa relembrar: até as guerras se humanizam quando Deus é deixado fora do campo de batalha. Por isso, é preciso humanizar o debate sobre as pesquisas com células-tronco e dispensar um olhar humano, um olhar de misericórdia para muitos que, nascidos vivos e sofrendo a experiência da dor de uma morte cada vez mais íntima, poderão ser abandonados em favor de um debate medieval que se julgava superado. Resta-lhes, contudo, uma última esperança: a ciência. Ou melhor, o Supremo Tribunal Federal.

Correio Braziliense

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