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Ivaldo Lemos Júnior
Promotor de Justiça.

Um bonde chamado desejo é uma obra dos anos 1940 do dramaturgo americano Tennessee Williams. Tanto sua encenação teatral quanto o filme consolidaram o trabalho da dupla formada pelo diretor Elia Kazan e pelo ator Marlon Brando. Este viveu de modo definitivo o personagem principal, Stanley Kowalsky. Brando é tido como o melhor ator de todos os tempos, e eu concordo plenamente.

Stanley Kowalsky é um americano comum, de “classe média baixa”, que trabalha como braçal e tem gostos simples como jogar boliche ou pôquer com os amigos. É casado com Stella, uma dona de casa que é um doce, um amor de pessoa. Ele, ao que tenham mau caráter, não importa. Para o primatólogo F. De Waal, “tudo na evolução converge para o êxito reprodutivo, por isso as diferentes orientações de machos e fêmeas são perfeitamente compreensíveis”. Pode ser qcontrário, é estúpido, um grosso (esse era). Mas era bonito, e o fascínio do sex appeal convida à aceitação social e até ao exercício do poder. Pessoas bonitas não são descartadas; se o forem como cônjuges, não o serão como amantes, ainda ue algumas mulheres se sintam atraídas pela possibilidade de contemplar sua prole com bons genes, e o caminho mais previsível para isso é a escolha de um parceiro sadio, de boa aparência. Tem gosto para tudo.

Seja como for, Stanley e Stella se dão bem e, à sua maneira, são felizes no casamento.

Até que um dia aparece a irmã dela, a Blanche Dubois, que vem para passar um tempo e acaba ficando. Ela usa a residência do casal como quer, haure o estoque de bebida, monopoliza as conversas. Irrita o cunhado de todas as formas imagináveis, descreve-o como uma pessoa brutal e selvagem, tenta jogar a irmã contra ele. Sem falar no fato de ter arruinado o patrimônio da família.

No dia de seu aniversário, Blanche está na expectativa de receber a visita do melhor amigo do cunhado, com quem tem um namoro mal resolvido. Nesse dia, Stanley está especialmente mal-humorado, tendo que suportar a conversa chata de uma cunhada que mora consigo há intermináveis meses, e que não dá o menor sinal de estar de saída. À mesa, após ser ofendido (de “porco” para baixo), Stanley enfim perde a cabeça, atira seu prato contra a parede e desabafa, vociferando contra as duas, cunhada e mulher - esta, na tentativa de obtemperar as tensões, vira-e-mexe fica do lado daquela, que considera uma pessoa frágil (e que, no fundo, tinha um passado nebuloso, que estava tentando esconder ou deixar para trás).

Onde estou querendo chegar é exatamente a interpretação dessa conduta de Stanley: agressiva ou defensiva? Teria ele cometido - vou usar a terminologia do Projeto de Lei 905/99, do deputado Freire Jr. - “crime de violência familiar”, consistente no “emprego de violência psicológica”, na forma de “intimidação ou perseguição à pessoa de seu ambiente familiar, causando-lhe dano psicológico”? Acaso uma norma penal desse tipo estivesse em vigor, o que pode ocorrer a qualquer momento, dado o ambiente propício para tanto, estaria Stanley sujeito à persecução penal, até a pena de detenção? Ou teria ele expressado humanamente o limite de sua paciência, que vinha sendo fustigada há tanto tempo e de tantos modos, a ponto de se poder achar que quem sofria violência psicológica era ele?

Stanley comete mais dois crimes ao longo do enredo, e esses não deixam sombra de dúvida: agressão física contra a mulher (que por sinal estava grávida), após jogatina e muita bebida, e um bizarro assalto sexual contra Blanche que, no fim das contas, enlouquece. Não creio que nenhum promotor deixasse de processá-lo por essas infrações. Mas também acho que condutas que não são investigadas em seu mais minucioso contexto podem se materializar no simplismo pernóstico da letra escarlate, que não é tão perdoadora quanto Stella em relação ao esposo: uma vez bandido, sempre bandido.

De Waal sabe que muitas vezes são as fêmeas quem interrompem as altercações dos machos, em momentos de manifestações ritualizadas de poder ou de violência real, ainda que nos territórios dominados por eles. Mas noutras vezes, as fórmulas matemático-jurídicas tendem a julgar a pessoa pelo que ela é - o que inclui preconceitos como atração física e riqueza - e tratar como vítima inocente quem é muito mais um agente provocador de discórdias e conflitos.

Jornal de Brasília

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