Thiago André Pierobom de Ávila
Promotor de Justiça do MPDFT e Doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa
Os brasileiros e a comunidade internacional assistiram com um misto de angústia e torcida as operações militares de ocupação de favelas no Rio de Janeiro. A violência no Rio de Janeiro é um problema complexo. O Estado realmente não estava presente em muitas das favelas: foi um abandono social durante décadas que permitiu o florescimento do poder paralelo dos traficantes. Obviamente, essa situação constitui uma violação sistemática de direitos fundamentais, na medida em que o Estado deixa órfãos os cidadãos dessas comunidades.
O Estado não conseguia sequer entrar nessas áreas dominadas pelo tráfico. Para entrar teve que reconquistar. Não discuto que a "reconquista" era necessária, mas tenho dificuldades em assimilar com legítimo muito do que tem sido feito nesse processo de "reconquista". Aquilo que assistimos não foi uma operação policial, foi uma operação bélica. Mas se o uso de estratégias militares era mesmo indispensável, como a supressão generalizada da inviolabilidade domiciliar, então deveria ter sido previamente declarado estado de sítio, para ficar muito claro que aquilo que estava sendo realizado simplesmente não é o normal.
Acompanhamos pela imprensa entrevistas informando que estava sendo realizada uma "operação varredura", vistoriando todas as casas para identificar os possíveis foragidos (busca e apreensão coletiva na favela), realizaram-se revistas pessoais em todas as pessoas que entravam e saíam e prendendo algumas pessoas para "identificação". O CPP não admite buscas coletivas (exige-se individualização do endereço) e a nossa Constituição não admite a prisão para averiguação de identidade (apesar de outros países o admitirem, sob severos requisitos). Se eventualmente algum juiz autorizou esse "mandado de busca domiciliar coletiva", ele é flagrantemente inconstitucional e ilegal. Não desconsidero que o padrão de autorizações de buscas domiciliárias com individualização de endereço é próprio de sistemas urbanísticos que permitam a individualização de residências, e a estrutura das favelas nem sempre permite isso, pois há locais que simplesmente não possuem endereço, as correspondências são entregues no "centro comunitário". Mas buscas coletivas estão simplesmente além do minimamente aceitável, mesmo para situações extremas.
Ademais, essas diligências "fora-da-lei" reforçam o mito do "superpolicial", aquele que arrisca sua vida pela "missão", que deve fazer de tudo para assegurar a eficiência de sua atuação e que enxerga a lei como um empecilho à Justiça. O apoio da mídia e de segmentos da sociedade (ou não diretamente afetados pela violência da "reconquista" da favela ou, ainda que afetados, alienados quanto ao efetivo exercício da cidadania) às violações sistemáticas de direitos reforça na subcultura policial a necessidade ordinária de se criar atalhos à legalidade e de proteger o colega "operacional" que trilhou pelo atalho. Reforça-se a cultura de que a atividade policial é uma "guerra contra o crime" (metáfora que acaba legitimando o vale tudo), e que os policiais devem se proteger reciprocamente dos ataques externos, aí incluídas as reclamações contra eventuais desvios: afinal de contas, estavam arriscando suas vidas na "guerra contra o crime". Aliás, de janeiro a março desse ano, 32 policiais morreram assassinados no Rio de Janeiro - algo que também não pode ser desconsiderado como sendo uma violação sistemática de direitos humanos...
Em síntese: reforça-se (e normaliza-se) que a polícia pode (quase) tudo para combater o crime, os atalhos à legalidade são sedimentados como legítimos na cultura policial e os policiais são compelidos a uma cumplicidade recíproca para assegurar que o trabalho "eficiente" do grupo não se desfaça por uma "filigrana" legal. Uma cultura antidemocrática na qual não há limites, não se presta contas e não se responsabiliza.
Não discuto que o Estado deveria efetivamente se fazer presente nas favelas (não apenas com policiais, mas também com assistência social integral), que os foragidos deveriam ser capturados e que a normalidade deve ser restabelecida. Todavia, os fins não justificam os meios. Ainda temos uma longa jornada para a efetiva consolidação democrática no Brasil e esse caminho não passa pelo fortalecimento de uma cultura policial antidemocrática.
Tenho muito receio da normalização da exceção. Ou melhor, da violação sistemática de direitos de excluídos... A Polícia é uma instituição das mais importantes no Estado de Direito e devemos cuidar bem de sua legitimidade e legalidade.
Correio Braziliense