que dificulta a defesa da vítima e o dolo eventual
Análise da decisão do STF no HC 95.136/PR
Promotor de Justiça Ricardo Antônio de Souza
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, recentemente, no sentido da incompatibilidade entre o dolo eventual e o homicídio qualificado pelo inciso IV do § 2º do artigo 121 (surpresa, traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido).
Trata-se de decisão equivocada, baseada em errôneas premissas, conforme veremos a seguir.
A decisão foi proferida nos autos do HC 95.136/PR relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa. A defesa alegava a incompatibilidade do dolo eventual com a qualificadora do artigo 121, parágrafo 2º, inciso IV; pedia também a redução da pena e o afastamento da impossibilidade de progressão da pena. O réu foi condenado pela Justiça do Estado do Paraná ao cumprimento de 18 anos de reclusão, a serem cumpridos integralmente em regime fechado, por ter atropelado e matado um casal que passeava na calçada.
De acordo com o Ministro Joaquim Barbosa, há precedentes no Supremo que já orientam pela impossibilidade de se imputar um homicídio praticado em dolo eventual com o homicídio qualificado pelas hipóteses do inciso IV do § 2º.
Quanto à qualificadora imputada ao sujeito, o Ministro Joaquim Barbosa lembrou que a posição do STF é no sentido da incompatibilidade com o dolo eventual, uma vez que ela somente seria aplicável quando há intenção dolosa, seja por meio de traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; o que entendeu não ter ocorrido no caso em julgamento no presente habeas corpus.
De igual maneira decidiu o Ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC 86.163: é manifesta a incompatibilidade entre o dolo eventual, que "implica numa mera aceitação de um resultado possível - e a qualificadora do recurso que impossibilita a defesa da vítima, a qual reclama um preordenamento do agente à conduta criminosa".
A decisão é equivocada, primeiro, porque exige à tipificação da qualificadora algo que nunca, nem mesmo nos crimes com dolo direto, foi exigido: um preordenamento, um planejamento, uma previsão antecipada do autor para encontrar a vítima em situação indefesa ou com a defesa mitigada. Por óbvio que agindo de emboscada, à traição ou mediante dissimulação, o autor planeja diminuir a defesa da vítima (aumentando o grau de reprovabilidade da conduta). Mas, quando o autor age de surpresa, isso não é necessário. Por exemplo, o autor chega ao bar (cenário de vários crimes de homicídio) propenso a matar a vítima. Ele a pode encontrar bebendo, conversando, andando, de frente ou de costas, porém se no exato momento da execução da conduta a vítima estiver de costas a qualificadora do inciso IV §2º do art.121 incidirá, sem a necessidade do autor ter planejado antecipadamente isso. Assim como nos casos em que os membros de uma gangue de traficantes resolvem matar integrantes de outra gangue e vão até o local onde as vítimas traficam e sabem que a podem encontrar atentas ou desatentas. Se elas estiverem desatentas e os dados objetivos apontarem que sua defesa era mitigada, igualmente a qualificadora incidirá. Assim, resta evidente que nunca foi exigido para o crime de homicídio qualificado pela surpresa um planejamento detalhado da execução, bastando que objetivamente a vítima pelas circunstâncias que foram cometido o homicídio estivesse com sua defesa reduzida.
Erra o STF, ademais, ao simplificar demasiadamente a questão, apregoando que o dolo eventual é incompatível com a qualificadora do inciso IV §2º do art.121. Com efeito, é certo que as qualificadoras têm por razão de existência aumentar a responsabilidade penal do agente em casos que demonstram a imprescindibilidade de maior reprovabilidade da conduta (seja considerando a necessidade de prevenção geral ou especial). Fazer tábua rasa disso é dizer que em todos os casos de homicídio com dolo eventual a reprovabilidade da conduta, considerando-se o modo de execução da conduta, não sofre graus de diferenciação.
Vejamos: o autor, na direção de veículo automotor, bêbado em alta velocidade, praticando racha, pode matar tanto o transeunte quando o ocupante do banco do passageiro do veículo. O trauseunte estará, provavelmente em situação indefesa (fato que é previsível e cujo risco o autor também assume), ao passo que o passageiro do veículo poderia evitar a própria morte, desde que tivesse o prévio conhecimento da conduta que o autor estiva prestes a executar (praticar racha bêbado). O comportamento da vítima influenciará decisivamente na reprovabilidade da conduta do autor, se a vítima estivesse em situação em que não é razoável exigi-la a atenção ao risco criado pelo autor (princípio da confiança), a qualificadora deve se fazer presente para evitar condutas da mesma espécie (prevenção geral) e para punir mais severamente o autor com o intuito de fazê-lo entender que sua conduta é mais grave exatamente porque atinge pessoas desprevenidas ante a sua conduta criadora de risco de morte.
A criação do risco, sua assunção pelo autor e o conseqüente resultado morte podem ter graus de reprovabilidade bastante diferentes de acordo com a situação da vítima, que pode estar em comportamento socialmente aceito como tranqüilo e de risco diminuto, de modo que não lhe era de maneira alguma exigido que atentasse para o risco criado pelo autor do crime, sendo necessária a maior reprovabilidade da conduta, cujo meio para tanto é exatamente a incidência da qualificado do inciso IV, §2º, do artigo 121.
Nesse sentido:
"PROCESSUAL E PENAL. HOMICÍDIO. DOLO EVENTUAL E SURPRESA. COEXISTÊNCIA. I. O dolo eventual pode coexistir com a forma pela qual o crime é executado. Assim, nada impede que o agente, embora prevendo o resultado morte, o aceite e pratique o ato usando de meio que surpreenda a vítima, dificultando ou impossibilitando a defesa, tal o quadro que entremostra nos autos. II Recurso especial conhecido e provido." (REsp nº 57.586/PR, Relator Ministro Jesus Costa Lima, in DJ 25/9/95 - nossos os grifos).
Vale destacar, por fim, que há bem pouco tempo nem ao menos se admitia o dolo eventual em mortes causadas no trânsito. Porém os valores, o sentido vetorial das decisões, nos processos penais, desde a decisão de oferecer a denúncia pelo crime mais grave até as decisões dos Tribunais Superiores ao analisar os veredictos proferidos nos julgamentos pelos Tribunais do Júri por todo o Brasil, têm demonstrado que a situação se modificou, havendo algumas condenações por homicídios com dolo eventual. Nesse cenário é um grande retrocesso a decisão do STF que subtrai completamente do Corpo de Sentença do Tribunal do Júri a possibilidade de averiguar e decidir o grau de reprovabilidade da conduta daqueles que matam com dolo eventual, principalmente no trânsito.
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