Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Há uma passagem curiosa no livro "A fazenda africana", da dinamarquesa Karen Blixen, na qual um jovem chamado Kitau veio trabalhar para si como serviçal. Segundo Karen, Kitau era "um criado observador e atento", e pelo rapaz ela se afeiçoou. Mas um belo dia, sem mais, ele lhe pediu uma carta de recomendação para trabalhar para outra pessoa, o xeque Ali Bin Salim.

Karen não gostou da ideia de perder Kitau e se dispôs a mantê-lo, pagando-o mais. Ele retorquiu, negando que estivesse insatisfeito com o salário. É que estava avaliando se se tornaria cristão ou muçulmano.

Na verdade, Kitau se oferecera para trabalhar para Karen para conhecer a "testurde", como se diz em sua língua, ou seja, os costumes cristãos. Passados três meses, queria passar os três seguintes com o xeque Ali, a fim de se familiarizar com a "testurde" muçulmana, e aí sim tomar uma decisão definitiva.

Não sei afinal qual foi o resultado derradeiro desse teste, desse "auto-estágio probatório" de Kitau. Espero que tenha sido bem sucedido. Em matéria de fé, há mistérios insondáveis que conduzem à experiência de Deus de maneira mais ou menos satisfatória, profunda e plena. Estou evitando usar a palavra "verdadeira".

Mas também existem mistérios nada misteriosos que apenas revestem o âmago da intimidade entre Criador-criatura. É o verniz social e a própria trajetória individual no contexto de sua educação, de sua formação pessoal.

É conveniente ser cristão em um país cristão. É mais cômodo porque os hábitos estão arraigados, existem templos, existem profissionais, existe literatura. Existe toda uma atmosfera favorável. A "decisão" está tomada de maneira passiva, e ela não é revertida como se troca de camisa.

No Brasil, o catolicismo romano não é a religião oficial, mas é a religião não-oficial. Ao ser indagado a confessar seu status religioso, o sujeito tende a se dizer católico, mesmo que não saiba declinar quais são os dez mandamentos e nem se lembre da última vez em que pisou em uma igreja.

Jornal de Brasília