Ivaldo Lemos Junior
Eu dizia que o aspecto normativo do direito é o mais conspícuo mas não é o único e, muitas vezes, não é sequer o mais decisivo para tratar das situações submetidas ao seu domínio.
É o mais conspícuo porque é o mais paradigmático e o mais emblemático. É também o mais óbvio. Quando se pensa no território jurídico, logo se pensa em uma teia de leis e normas e não sei quantos regulamentos de variados tipos, intrincados em mil e um artigos e incisos e alíneas. É intuitivo que as pessoas vão para a faculdade a fim de obter treinamento nessas coisas. O vulgo pensa assim e os próprios profissionais também pensam assim. Eliminem o componente da regra da configuração do direito e ele fica irreconhecível.
Mas o direito também é fato e com frequência é esse o aspecto que fala mais alto, mais do que a característica normativa propriamente dita, vale dizer, do comportamento que se pretende regular no futuro, e das consequências que o passado reserva para os que ousam desobedecer as previsões arquetípicas.
Vocês já ouviram falar em "fato consumado". Fato consumado nada mais é do que o reconhecimento de que a disciplina normativa fracassou, e seu conteúdo deveria ser aplicado mas não pode mais, seja por impossibilidade física (por exemplo, para desocupar uma determinada propriedade tomada por milhares de pessoas e construções), seja por falta de motivação suficiente, a chamada "letra morta". Existem muitas letras que formalmente estão vivas mas na verdade não estão. Já morreram e só falta enterrá-las. Às vezes não há sequer a preocupação em sepultá-las, e ninguém se dá nem conta disso.
Em um quadro famoso, Magritte pintou um cachimbo e escreveu: "isto não é um cachimbo". Claro que não é. Um desenho de um cachimbo é um desenho e não um cachimbo. Um mapa da África com o Nilo representam um continente e um rio, com os quais não se confundem.
Com o direito é a mesma coisa. Há mais coisas entre o Código Penal e a Delegacia de Polícia mais próxima do que supõe a nossa vã filosofia.
Jornal de Brasília