Luciano Coelho Àvila
Promotor de Justiça no Distrito Federal e professor de Direito Constitucional
A pretexto de viabilizar a punição mais ágil e desburocratizada dos membros do Ministério Público (MP) que incorrem na prática de infrações penais e disciplinares, excessos e abusos de autoridade no exercício de suas funções, começa a tramitar pelo Senado a Proposta de Emenda à Constituição nº 75/2011, de autoria do senador Humberto Costa (PT/PE), que prevê, entre outras penalidades, a aplicação da pena de demissão dos promotores de Justiça por decisão administrativa direta do Conselho Nacional do MP (CNMP), órgão de controle externo criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e composto por cidadãos indicados pelo Senado, pela Câmara dos Deputados, advogados indicados pela OAB, juízes indicados pelo STF e pelo STJ, além de membros do MP da União e dos estados.
Atualmente, a decretação da perda do cargo de membro do MP só pode ocorrer após sentença judicial transitada em julgado, a denominada garantia constitucional da vitaliciedade (art. 128, § 5º, I, "a" - CF), igualmente assegurada aos juízes (art. 95, I - CF). Historicamente, a garantia da vitaliciedade teve por objetivo proteger a independência do MP e do Poder Judiciário no exercício de suas funções constitucionais em defesa dos direitos da sociedade, evitando-se que o promotor ou o juiz de direito, responsáveis pela preservação da supremacia da Constituição e das Leis, venham a ser alvo de retaliações políticas arbitrárias que possam resultar em suas demissões sumárias do serviço público.
A PEC 75/2011 é apresentada aos olhos da sociedade, dessa forma, com aparente intuito "moralizador" e "anticorporativista", despertando a impressão inicial de por fim a um suposto privilégio odioso assegurado aos promotores. O falacioso fundamento moralizador da proposta não resiste, entretanto, a uma análise mais criteriosa acerca dos seus verdadeiros objetivos.
De fato, coincidentemente ou não, a PEC 75 foi publicada no Diário do Senado do dia 11/8/2011, poucos dias após a deflagração da Operação Voucher, que resultou na prisão de 37 pessoas no interior do Ministério do Turismo, acusadas de desvio de dinheiro público da ordem de R$ 3 milhões. Na ocasião, foram presos integrantes do alto escalão do governo federal. Em rede nacional, o líder do PT na Câmara dos Deputados, deputado Cândido Vacarezza, tratou logo de afirmar perante os jornalistas que as prisões decorriam de abuso de autoridade da Polícia Federal e do Ministério Público. Afinal, mais apropriado que comentar a dimensão do estrago gerado ao país pelos atos de corrupção, era justificar, como já se tornou corriqueiro em situações análogas, que havia abuso na ação daqueles órgãos de fiscalização e controle.
Não é preciso muito esforço intelectual para se perceber, a partir do exemplo acima e de tantos outros que poderiam ser lembrados, que a PEC 75, apresentada sob o rótulo da "moralização" por desburocratizar o processo de demissão dos promotores de Justiça acusados de desvios de conduta, finda por ocultar finalidades não explicitamente declaradas, em especial a de propiciar, com o passar dos anos, a demissão administrativa sumária de membros do Ministério Público que vierem a se dedicar, com responsabilidade e afinco, às investigações e denúncias dos grandes desmandos de corrupção que assolam o país, de forma a expor a imagem de personagens influentes da República perante a opinião pública.
E é justamente nesse contexto não abertamente declarado, posto que politicamente incorreto, que resulta claro o propósito principal da PEC 75: o de mais uma vez intimidar o MP, levando a sociedade a perder um dos seus mais importantes mecanismos de controle da corrupção, representado pela independência na atuação dos promotores, que passarão, diante do risco iminente de demissão de seus cargos por decisão direta de um órgão administrativo de composição mista, não necessariamente técnica (CNMP), a denunciar apenas ladrões de galinha, assaltantes à mão armada, estupradores e homicidas, e não mais os assaltantes e estupradores dos cofres públicos. Eis aí o grande perigo oculto na PEC 75: ela seguramente definhará o espírito combativo do membro do MP para dar lugar ao surgimento de promotores covardes e receosos de suas ações, em manifesto prejuízo ao interesse da sociedade por um órgão de investigação e denúncia verdadeiramente independente.
Não se ignora que o CNMP, instituído pela Emenda nº 45/2004, tem contribuído significativamente para o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público, assim como para o efetivo cumprimento dos deveres funcionais de seus integrantes. Daí a se ampliar os seus já numerosos poderes para se permitir a aplicação da pena de demissão administrativa aos promotores vai uma enorme diferença. Isso porque nada impedirá, na esteira de argumentos já defendidos por alguns senadores durante a recente sabatina de recondução do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, futuras tentativas de alteração da própria composição atual do CNMP, de sorte a ampliar o número de conselheiros indicados politicamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. Assim, primeiro se permite a demissão direta pelo CNMP para, em momento posterior, alterar-se a composição desse conselho, que poderá passar a ter novos integrantes indicados diretamente pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, propiciando a futura tomada de decisões demissionárias não necessariamente técnicas, mas pautadas pelo critério político, o que nos leva, naturalmente, à seguinte reflexão: doravante, terá o promotor que "agradar" os senadores e deputados em sua atuação para não correr o risco de ser demitido?
É evidente, pois, que a alteração constitucional proposta se apresenta como uma cortina de fumaça lançada sobre os olhos da sociedade brasileira: ela possibilitará não só a demissão de promotores ímprobos, como também a demissão política sumária de membros do MP que, no exercício responsável de suas atribuições legais em defesa da sociedade, estiverem "incomodando" os governantes e políticos inescrupulosos e corruptos. Nada impedirá, nas mesmas condições, a extensão da desastrosa demissão administrativa direta para os juízes, a ser aplicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o que certamente afetará a independência jurisdicional, um dos alicerces de qualquer democracia civilizada.
Tornar os membros do Ministério Público e, em perspectiva, os juízes, vulneráveis, suprimindo-lhes a vitaliciedade, é derrogar, indiretamente, o direito dos cidadãos e das comunidades a um julgamento justo (fair trial). Demitir sumariamente promotores e juízes por incomodarem os poderes econômico e político comprometerá a promoção da justiça e a prestação jurisdicional realmente justa e efetiva.
Resta saber se a sociedade brasileira compactuará com o enfraquecimento das garantias de independência do Ministério Público rumo à construção de um novo modelo de instituição permanentemente intimidada e ameaçada por propostas legislativas tendentes a resgatar a já superada ideia da mordaça. Em jogo, uma vez mais, a ainda frágil democracia brasileira e a capacidade de irresignação da opinião pública diante de PEC manifestamente atentatória aos ideais de transparência, moralidade e independência dos órgãos de controle da administração pública.
Correio Braziliense