Renato Barão Varalda é Promotor de Justiça e Coordenador Administrativo da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude do Distrito Federal; especialista em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília e University of Essex e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Flávia de Araújo Cordeiro é Psicóloga do Setor Psicossocial da Promotoria da Infância e Juventude do Distrito Federal e especialista em Psicologia Infantil pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama
A questão do consumo de drogas psicoativas por crianças e adolescentes tem sido debatida na mídia e na opinião pública, promovendo calorosos embates sobre a melhor ação a ser dispensada no combate aos seus danos.
Não existe sociedade sem drogas. Tão antiga quanto a própria humanidade, a tradição do uso de substâncias capazes de alterar o estado de consciência perde-se no tempo, tendo sido usadas em rituais religiosos, para fins medicinais ou até para produzir alterações de consciência que promovessem uma "fuga" da realidade. No século passado, entretanto, o uso de drogas adquiriu status de problema social, numa convergência dos discursos médico, jurídico e social do início do século XX. Inaugurou-se uma nova representação sobre o usuário, que transita entre os estigmas da marginalização e da fraqueza moral.
Na juventude, o problema de saúde mental predominante tem sido a dependência química. É um distúrbio crônico, recorrente e multifatorial, considerado um problema de saúde pública em todo mundo, no qual a vulnerabilidade varia em maior ou menor grau de uma pessoa para outra.
Diariamente, as Promotorias da Infância e Juventude do Distrito Federal se deparam com dezenas de pais implorando por medidas que retirem seus filhos dos locais onde há fácil acesso a substâncias entorpecentes ilícitas, tendo em vista a grave situação de dependência química que se encontram.
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2003, em seu artigo 28, ao não determinar a pena de restritiva de liberdade aos autores, maiores de 18 anos de idade, no momento da prática do crime de uso e porte de substância entorpecente, mas advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, transferindo ao Sistema de Saúde a re-educação (tratamento, reabilitação) dos usuários, acarretou, por simetria, a impossibilidade de aplicação da medida socioeducativa mais gravosa de internação aos adolescentes apreendidos em razão da prática desse ato infracional, ainda que estejam presentes todos os requisitos elencados nos artigos 122 e 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Também do mesmo modo que o § 7º, da Lei nº 11.343/03, o ECA, em seu inciso VI, do artigo 101, possibilitou a inclusão em programas oficiais ou comunitários de auxílio, orientação e tratamento a toxicômanos aos adolescentes dependentes químicos.
No entanto, a problemática da reabilitação dos adolescentes dependentes químicos transferida ao Sistema de Saúde deu-se sem que este se aparelhasse adequadamente para receber esse público, alvo de extrema violação de direitos. Embora os artigos 7º e 11 do ECA prevejam o direito a proteção à vida e à saúde de crianças e adolescentes mediante a efetivação de políticas sociais públicas que lhe permitam o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, e garantam o atendimento integral à saúde por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), com acesso universal e igualitário às ações para promoção, proteção e recuperação da saúde aos adolescentes em situação de vulnerabilidade social, a realidade se mostra caótica.
O Ministério da Saúde aponta a existência de 600 mil usuários de crack no Brasil (alguns pesquisadores estimam em um milhão), embora a Portaria 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 do próprio órgão não tenha sido cumprida integralmente, ante o número insuficiente e até a inexistência em algumas Unidades da Federação, a exemplo do Distrito Federal, de CAPS i II e CAPS ad II. Ademais, não há como efetivar-se o tratamento em regime de internação hospitalar, em razão da inexistência, nesta unidade federativa, de equipamentos de saúde públicos destinados a prestar esse atendimento, o que impossibilita a adequada a assistência a crianças e adolescentes com quadro de dependência química. Nessa mesma situação encontram-se os adolescentes dependentes químicos que cumprem medidas socioeducativas diante da prática de ato infracional, já que também dependem de tratamento hospitalar e extra-hospitalar de qualidade oferecido pelo SUS.
Em que pesem os avanços ocorridos após a Constituição Federal de 1988, as alternativas de atendimento que se inscrevem no campo das políticas públicas carecem de propostas concretas e efetivas. Tal situação vem levantando discussões acerca da possibilidade de se determinar a internação compulsória, isto é, determinada pela Justiça, mediante laudo médico circunstanciado, que caracterize os seus motivos, conforme artigo 6º, da Lei nº 10216, de 6 de abril de 2001, diante do direito constitucional à liberdade de locomoção, à intimidade e intangibilidade do corpo humano, previstos no artigo 5º, incisos X e XV, da Magna Carta. Mas não se pode negar que a opção pelo acolhimento compulsório foi a alternativa do campo jurídico frente ao aumento da demanda e à frágil rede de assistência. Esse paradoxo sobre a restrição da liberdade da criança e do adolescente em estado de intoxicação aguda deve ser superado, diante da obrigação do Estado Democrático de resguardar esse público de situações de risco e de vulnerabilidade para preservar-lhe integralmente à saúde, e, assim, cumprir a sua função constitucional de proteção integral.
Além da criança e do adolescente estarem em fase de formação de personalidade, ou seja, não conhecem totalmente os seus direitos e não reúnem todas as condições de defendê-los, razões pela quais são detentores de direitos especiais, estão impossibilitados de responder pelos próprios atos em face das alterações psicofisiológicas causadas pelo uso intenso de drogas psicoativas. Nesse caso, a preservação da vida e da integridade física e psíquica desses sujeitos de direito deve prevalecer sobre o direito constitucional de locomoção, intimidade e intangibilidade do corpo humano se o caso concreto assim se fizer necessário. Ao se considerar o princípio da dignidade da pessoa humana como critério orientador do processo de ponderação de valores constitucionalmente determinados, constata-se que o exercício da melhor opção dos princípios prevalentes no caso concreto (vida, saúde e integridade física e psíquica) decorre da proteção integral e da dignidade da criança e do adolescente, ou seja, a situação fática e jurídica em que se encontram justifica a restrição de uns direitos em prol de outros preponderantes.
Grande insatisfação tem gerado na sociedade o retorno constante às ruas de crianças e adolescentes apreendidos em razão da prática do ato infracional de uso e porte de substância entorpecente, por terem sido liberados pelo Sistema de Justiça. O Estado que se diz garantidor de direitos fundamentais não pode fechar os olhos para essa questão, tampouco tolerar a existência de "locais de traficância" e "cracolândias", onde o direito à saúde e à integridade física e psíquica de crianças e adolescentes são flagrantemente violados. Embora, inicialmente, a disseminação das substâncias entorpecentes ficasse restringida a essas áreas, atualmente verifica-se um consumo está virando uma epidemia, podendo ser flagradas situações de comércio e consumo de drogas em qualquer lugar do país e a qualquer hora do dia. Por exemplo, no Brasil, o crack chegou na década de 1980, restrito à apenas algumas regiões, e, atualmente, a droga, além de ter substituída a cocaína pela pasta e processa inclusive com gasolina e querosene, devastando o organismo humano, ele se disseminou por todo o país, entre adolescentes e crianças.
Intervir no campo da dependência química na infância e adolescência demanda olhar interdisciplinar e atuação intersetorial. Somente uma visão ampla do tema permite compreendê-lo para além das questões legais e jurídicas, alcançando o sujeito e suas vulnerabilidades, sejam elas individuais, familiares, ambientais, sociais ou econômicas. Qualificar essa intervenção requer a reorientação do modelo assistencial vigente, destacando-se o papel dos serviços de saúde para tratamento de usuários de álcool e drogas nas ações de prevenção e tratamento.
A ausência de políticas públicas do Estado que visem a prevenção ao uso de drogas psicoativas, tratamento e recuperação dos transtornos relacionados com a dependência adequados às crianças e aos adolescentes fere diretamente o artigo 227 da Constituição Federal e o artigo 4º do ECA, que delimitou os exatos termos dessa garantia de prioridade infantojuvenil, ao dispor que essa garantia compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
O desafio agora é tornar efetiva a doutrina da proteção integral, o que não se resume apenas na priorização de recursos orçamentários suficientes para a implementação de políticas públicas voltadas ao público infantojuvenis, mas também na correta e eficiente execução desses recursos que, no caso em discussão, significa implementar rede de tratamento para atender a demanda dessa parcela da população, inclusive com destinação de leitos hospitalares para os casos de intoxicação aguda e de dependência química de crianças e de adolescentes, sobretudo, o crack, altamente prejudicial ao organismo.
Revista Jurídica Consulex, ano XV, nº 352, páginas 24 e 25