Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Produzir carvão é um trabalho fascinante. Há, sem dúvida, algo intoxicante na atividade, e sabe-se que os carvoeiros não veem o mundo como as outras pessoas. Eles são dados à poesia e à fantasia, e têm parte com os demônios da mata, que lhes fazem companhia. O carvão resultante da queima é de uma beleza extraordinária, sobretudo quando se abre o forno e se espalha seu conteúdo pelo chão. Suave como a seda, a matéria purificada, liberta de seu peso e tornada imperecível, é a pequena múmia negra da madeira.
O parágrafo acima foi escrito por Karen Blixen e está contido no capítulo “O Velho Knudsen”, do livro “A fazenda africana”. Quando me deparei com o parágrafo, não consegui evoluir no livro. Eu o lia e o relia, e o relia novamente. Durante um bom tempo, só esse trecho me interessava.
Observem a grandeza espiritual de se ver beleza em tudo, inclusive nas coisas menos imediatamente atraentes, e sim sujas, grosseiras. Não tenho muita experiência na área, e confesso que não gostaria de ter, mas ousaria dizer contrário, que produzir carvão é tudo menos um trabalho fascinante. Karen não põe em dúvida o lado asfixiante, mas também enxerga uma certa “beleza extraordinária” na função, fruto de um olhar generoso, não como o de “todo o mundo”.
Lição de vida: quando estou cansado do meu serviço, desanimado ou inseguro, eu me belisco e repenso que há atividades muito piores: mais desgastantes, mais perigosas, menos “importantes”. Um lixeiro qualquer é meu herói. Um carvoeiro qualquer de minas fósseis é meu herói. A nem todos foi dado o privilégio de sublimar a intoxicação de seus afazeres com fantasia, na companhia inusitada de heróis invisíveis que vêm de lugar nenhum. Preferimos ficar praguejando.
Além disso, a transformação da madeira em seda traduz a mesma proporção de libertação do peso – do peso dos corpos, de todos os corpos. Esse é o primeiro e o último dos nossos problemas. A solução é torná-lo imperecível, como se fôssemos cadáveres adiados ou múmias antecipadas.
Jornal de Brasília