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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça

Um dos meus filmes favoritos é Vanilla Sky, que em português se chama Vanilla Sky, mesmo. Não é Céu de Baunilha, como seria a tradução, nem um desses nomes absurdos que inventam por aí.

Ali, o personagem principal, David, vivido por Tom Cruise, é um playboy que vive da herança do pai, e vive bem, obrigado: mora num senhor apartamento, dirige um Porsche, promove festas bacanas, tem namoradas bonitas – uma delas chamada Julie Gianni. Num desabrido ataque de ciúmes de Julie, David sofre uma batida de carro horrível, e fica com o rosto e a auto-estima deformados. Ele nunca conseguiu se recuperar do trauma e das conseqüências das cirurgias a que se submeteu, e então comete suicídio.

Antes, porém, David tinha feito um contrato com uma empresa, de acordo com o qual seu corpo ficaria congelado e ele teria a vida imaginária que bem entendesse, e essa vida não era nada diferente da que levava antes do acidente – à exceção de que era toda de mentira. O filme se passa no momento em que David se apercebe disso, e uma das cláusulas do contrato permitia que ele pudesse escolher entre continuaremseu mundo de algodão – doce e encerrar a farra. Ele escolhe a segunda alternativa e se esborracha no chão duro e frio da realidade, fosse ela qual fosse.

O tal contrato é irreal – ainda não nos prometeram nada disso; em vez disso, os seres humanos congelados estão servindo é de cobaias para experiências científicas – mas a ficção científica do filme tem uma implicação concreta, que é o apelo delicioso de se fugir do mundo como ele é, com todas as suas dificuldades, e moldá-lo à nossa própria imagem e semelhança, em uma espécie de paraíso artificial, de milenarismo privado. Para alguns, "o real é um veneno mortal" (J. Marías).

Em um grau leve, isso não é mais do que sonho acordado, que despreza inocentemente a natureza do conhecimento humano, que é humano na medida em que respeita a diferença entre o "real" e o "possível". Soltar alguns suspiros de devaneio descaracteriza a intellectus ectypus e assim o problema da possibilidade, inexistente para os seres abaixo ou acima de si: aqueles estão confinados ao mundo de suas percepções meramente sensoriais; para o intelecto sobre-humano, tudo o que se concebe é real. Um sabe tudo, o outro não precisa saber nada.

Mas e daí?Nãohá problema em se querer terumPorsche e não uma Belina; comer caviar e não presuntada; ouvir John Coltrane e não Tom Zé ou Ana Carolina; namorar uma garota como a Julie Gianni (se não for pedir demais, com um temperamento mais contido). O oposto é que seria muito estranho.

É ainda pior exagerar na dose de imaginação, o que em filosofia se chama “solipsismo”. David – à sua maneira, todavia tão absurda quanto O retrato de Dorian Gray – era um solipsista, e só uma mente assim pode produzir a única tese absolutamente irrefutável: a que postula que você – você aí que está lendo este artigo – não existe. É impossível convencer o solipsista do contrário, a menos que ele deixe de sê-lo, exatamente como aconteceu no filme, em um processo pungente que culminou em um dilema moral. K. Popper dizia que o solipsismo é mais uma questão de psiquiatria do que de filosofia.

Truman, do filme “O show de Truman”, não teve sequer essa chance, porque era ele a vítima da fantasia alheia. Era um solipsista às avessas. Ora, se eu tenho o dever moral de não ser solipsista, ao menos me vejo no direito de ter a oportunidade de fazê-lo se o quiser. Exijo poder optar porque, sem algumas emoções perigosas, a vida não tem muita graça, deixa de ser o que é: drama. Nietzsche aconselha: "vivei em perigo". E precisa?

O mundo jurídico também está sujeito ao solipsismo de seus operadores e analistas. Estes, quando elaboram teorias supersticiosas que são desmentidas pelos elementos que compõem seu trabalho, que nem sempre são colecionados com seriedade e entregam produtos já prontos. Aqueles, quando se submetem à interpretação saturada de ideologias e gostos particulares, o que é um contra-senso egoísta, já que o sujeito não foi obrigado a abraçar a sua profissão, e é livre para abandoná-la a qualquer momento, por conta própria. Se não sou obrigado a sonhar que posso amar a Julie Gianni, também não posso ser obrigado a não sonhar.

Jornal de Brasília

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