Rodrigo de Abreu Fudoli
Promotor de Justiça do MPDFT
O objetivo do presente artigo é demonstrar a conveniência da disseminação da prática do oferecimento de denúncia com base no auto de prisão em flagrante. Sugere-se ainda a adoção de providências tendentes a aprimorar tal prática.
Como se sabe, para formar seu convencimento jurídico sobre a existência de prova da materialidade e de indícios da autoria delitivas, o Ministério Público não depende necessariamente da existência de inquérito policial, concluído ou não.
Quaisquer peças de informação que trouxerem tais elementos (indícios de autoria e certeza da existência do crime) são suficientes para embasar a denúncia, o que se depreende da análise conjugada de vários dispositivos do Código de Processo Penal (dentre eles, os arts. 12 e art. 40).
O art. 10 da Lei Complementar n. 75/93 (que regula o Ministério Público da União) determina que a Polícia Judiciária comunique, imediatamente, ao Ministério Público, a prisão de qualquer pessoa, com cópia dos documentos comprobatórios da legalidade do ato de prisão. A Lei n. 8.625/93, que estrutura o Ministério Público em cada Estado da Federação, silencia a respeito.
No entanto, o citado art. 10 da Lei Complementar n. 75/93 se aplica, por analogia, no âmbito dos Estados (art. 3º do Código de Processo Penal). De mais a mais, a comunicação do ato de prisão ao Ministério Público é decorrência lógica de sua tripla condição de autor da ação penal, de garante dos direitos humanos e de órgão de controle externo da atividade policial (arts. 127 e 129 da Constituição da República).
Segundo aponta a experiência, com base na maioria das comunicações de lavratura de auto de prisão em flagrante remetidas pela Polícia Judiciária ao Ministério Público, é possível, desde logo, o oferecimento de denúncia, no mesmo dia ou no dia seguinte, sem que seja necessário aguardar pelo inquérito policial. O oferecimento imediato de denúncia somente não se faz possível em casos mais complexos, ou ainda naqueles casos em que o Ministério Público entende ser o fato evidentemente atípico ou faltar, flagrantemente, justa causa para a ação penal.
Por isso, é conveniente que o Ministério Público, como regra e sempre que possível, passe a oferecer denúncia com base nas peças de comunicação da prisão em flagrante, assim que receba tais peças. A prática não é nova, e foi divulgada pelos Promotores de Justiça do MPDFT André Vinícius de Almeida e Rogério Schietti Machado Cruz – este, hoje Procurador de Justiça – no artigo intitulado "Celeridade-Qualidade: um binômio possível"(<https://www.geocities.com/CapitolHill/Lobby/1647/artecron/artigo01.htm>, publicado em 2000).
No entanto, o procedimento ora em comento pode ser ainda mais disseminado, com vantagens sob vários ângulos.
Dentre os principais objetivos está o de acelerar o início – e, conseqüentemente, a conclusão – da instrução criminal, economizando-se significativo trecho do curto prazo de 81 dias fixado pela jurisprudência para o encerramento da instrução, em se tratando de réu preso. Ressalte-se que o prazo para conclusão do inquérito policial, em se tratando de indiciado preso, em regra, é fixado em 10 dias (art. 10 do Código de Processo Penal). Tal prazo, porém, é de 15 dias, prorrogáveis por mais 15 dias, quando o inquérito envolve fato de competência da Justiça Federal (art. 66, "caput", da Lei n. 5.010/66). Finalmente, é de 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, quando é o caso de crime previsto na Lei de Entorpecentes (art. 51 da Lei n. 11.343/06).
O que normalmente ocorre é que a Autoridade Policial consome todo ou quase todo o prazo legal para terminar o procedimento de investigação, muitas vezes se incumbindo de providências que, embora previstas em lei, são absolutamente burocráticas e inúteis. É o caso, por exemplo, da confecção de boletim de vida pregressa (art. 6º, IX, do Código de Processo Penal) e de relatório final (art. 10, §°, do Código de Processo Penal). Em seguida, os autos do inquérito policial vão ao Judiciário, conforme determina o art. 10 do Código de Processo Penal (outra providência inútil e incompatível com o processo penal do tipo acusatório, como o que se tem no Brasil, pois o destinatário das investigações é o Ministério Público, e não o Judiciário, o que é desdobramento do art. 129, I, da Constituição da República). Por mais célere que seja a aposição do carimbo com a inscrição "vista ao Ministério Público", pelo servidor da Vara Criminal, algum tempo é ali gasto com tal procedimento e com outros, a saber, autuação, distribuição e conclusão ao Juiz.
Quando os autos do inquérito policial finalmente chegam ao Ministério Público, este disporá de 5 dias para oferecimento da denúncia (10 dias, em se tratando de crime previsto na Lei de Entorpecentes - art. 54, III, da Lei n. 11.343/06).
Ou seja, desde a prisão do indiciado até o oferecimento da denúncia podem ter se passado até 15 dias (um pouco mais, se considerada a tramitação pelo Judiciário). A situação se agrava quando se trata de inquérito para apurar crime de competência da justiça federal (a denúncia pode demorar 35 dias para ser oferecida, desde a prisão) e para apurar crime de entorpecentes (até 75 dias).
Como se vê, adotando-se o procedimento ora proposto, consistente em se adiantar o oferecimento da denúncia, o acusado receberá sua sentença com maior celeridade, atendendo-se ao disposto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República (direito à celeridade processual e à duração razoável do processo).
Há outras vantagens.
Muitas vezes, embora o ato de prisão em flagrante seja legal, não está presente qualquer das hipóteses que autoriza a manutenção da prisão cautelar (art. 312 do Código de Processo Penal).
Em situações tais, o Ministério Público, a par de denunciar o preso, pode, desde já, obtendo antes a sua folha penal esclarecida, manifestar-se favoravelmente à concessão de liberdade provisória, ainda que sem provocação formal por parte de advogado que patrocine os interesses jurídicos do autuado.
Além de se evitar prisão desnecessária do réu, evita-se também a formação de autos de pedido de liberdade provisória, contribuindo-se, com isso, para a desburocratização da Justiça Criminal.
No caso de concessão ao autuado de liberdade provisória, vislumbrando-se, em um primeiro plano, vantagem para o réu, surge também inegável benefício para a sociedade, consistente em se expedir mandado de citação para cumprimento concomitante à entrega do alvará de soltura pelo oficial de justiça ao citando. Em tal situação, o cidadão obtém a liberdade e, ao mesmo tempo, fica vinculado ao processo, pois, se não comparecer ao interrogatório, o processo segue contra ele mesmo assim. Infelizmente, é freqüente o desaparecimento do beneficiário da liberdade provisória, o que pode prejudicar a instalação da relação processual penal. Com a entrega do alvará de soltura acompanhado de mandado de citação, evita-se a impunidade que eventualmente poderia decorrer da aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal. Observe-se que essa vantagem de se garantir a presença do réu na relação processual penal não existe naqueles casos em que, antes da chegada do inquérito com indiciado preso, devidamente relatado, o Juízo criminal concede liberdade provisória ao autuado.
O procedimento ora comentado é interessante também para a preservação da prova sobre os fatos que são objeto do processo, eis que os policiais e as testemunhas envolvidas se lembrarão dos fatos com maior nitidez quanto antes forem ouvidos.
Além disso, a simples leitura do flagrante, muitas vezes, indica a necessidade de diligências investigatórias não realizadas pela polícia, e que podem ser requisitadas pelo Ministério Público, antes mesmo do decurso do prazo para a conclusão do inquérito policial, o que evita o retorno dos autos à delegacia posteriormente.
A prática revela que raramente é necessário aditar alguma denúncia por força da chegada posterior ao Ministério Público de informações complementares, que acompanham o inquérito policial completo. É que são poucas as diligências – probatórias – concretizadas pela polícia após a lavratura do auto de prisão em flagrante delito.
No cotidiano do trabalho de uma Promotoria de Justiça ou Procuradoria da República com atribuições criminais, por ocasião da adoção de tal procedimento, constata-se que, no início (primeiros meses), percebe-se um acréscimo no trabalho, pois, além dos feitos que chegam normalmente, ainda serão analisados os autos de prisão em flagrante, para denúncia ou arquivamento de plano. Entretanto, em pouco tempo é possível sentir a diferença, pois o trabalho, principalmente aquele relacionado aos inquéritos policiais e processos de réus presos, começa a diminuir.
Alguns alertas devem ser feitos, no entanto, para que o procedimento ora proposto não crie embaraços ou constrangimentos que podem ser evitados. Uma situação que pode ocorrer é o membro titular de um órgão ministerial oferecer a denúncia ou promover o arquivamento com base no auto de prisão em flagrante e, em seguida, iniciar seu período de férias ou licença. Em uma hipótese com conseqüências menos graves, o colega que substituir o titular, sem tomar conhecimento do oferecimento da denúncia ou da promoção de arquivamento, pode, inadvertidamente, repetir o ato. No caso de denúncia, isso ensejará litispendência. No caso de arquivamento, não se vislumbra problema quanto algum, a não ser que haja alteração no fundamento para o arquivamento (de falta de provas para atipicidade, por exemplo, o que pode interferir na possibilidade de reabertura das investigações - art. 18 do Código de Processo Penal). Descompasso maior, que pode trazer prejuízos à idéia de unidade da Instituição, pode surgir quando o Promotor de Justiça ou Procurador da República titular denuncia e o substituto, sem saber disso, promove o arquivamento do inquérito, ou vice-versa. Mas a referida contradição institucional pode ser evitada se o Promotor de Justiça ou Procurador da República, logo antes de se iniciarem as suas férias, a licença ou o recesso de final de ano, fizer um apanhado das denúncias por ele oferecidas com base no auto de prisão em flagrante nos últimos 15 dias, comunicando tudo ao seu sucessor, para que se evite repetição do ato ou, pior, prática de ato incompatível com aquele que já foi lançado pelo Ministério Público. E, em se tratando de período que precede ao plantão de fim, convém avisar a todos os plantonistas.
Ou seja, uma mínima organização administrativa impediria esses descompassos.
Instruindo a denúncia, pode seguir apenas cópia do auto de prisão em flagrante delito e da “nota de culpa" (expressão imprópria utilizada pelo Código de Processo Penal), os quais são os principais documentos comprobatórios da legalidade da prisão. É conveniente que também seja obtida, para acompanhar a peça inicial, a comunicação de ocorrência. Referida peça pode ser facilmente conseguida, por vários meios, especialmente via "fax", junto à Delegacia de Polícia, caso a caso. Pode ainda ser obtida via entendimento entre o Ministério Público e os órgãos da administração superior da Polícia Civil, para que seja enviada, sempre, acompanhando o auto de prisão em flagrante que é encaminhado ao Ministério Público. Aliás, na reunião das Promotorias de Justiça Criminais do MPDFT realizada em 20.11.2007 pela Assessoria de Políticas Institucionais do Procurador-Geral de Justiça, foi submetida a votação – e aprovada – a seguinte proposta, formulada pelos Promotores de Justiça Ricardo Marinho Tassi, Hiza Maria Silva Carpina Lima, Thaís Freire da Costa Flores, Raquel Aparecida R. Feliciano e Lenna Luciana Nunes Daher: "Comunicação de Prisão em Flagrante ao Promotor de Justiça e Ocorrência Policial. Necessidade de orientação por parte do NCAP à Polícia Civil no sentido de encaminhar ao Ministério Público cópia da Ocorrência Policial juntamente com a comunicação de prisão em flagrante".
O benefício decorrente da obtenção da comunicação de ocorrência reside no fato de que tal documento pode conter mais detalhes que aqueles registrados no corpo do auto de prisão em flagrante. É de se considerar, ainda, que, na comunicação de ocorrência, normalmente, estão mencionados os números dos ofícios e memorandos expedidos pela autoridade policial aos órgãos da Polícia Técnica (Instituto de Criminalística, Instituto de Identificação, Instituto Médico-Legal e outros), o que facilita a posterior requisição dos documentos e perícias cuja confecção o Delegado de Polícia já providenciou.
Eventualmente, pode acompanhar a inicial algum documento complementar, como o auto de apresentação e apreensão ou o termo de declarações de algum envolvido, ou seja, documentos que se reputam importantes, no caso concreto, antes de se oferecer a denúncia. Às vezes, nem isso é necessário, e a denúncia segue só com o auto de prisão em flagrante mesmo.
Ao se denunciar com base no flagrante, convém sejam adotadas providências complementares, como o envio, ao Delegado de Polícia responsável pela lavratura do auto de prisão em flagrante, de comunicação sobre o oferecimento da denúncia, para que a Autoridade Policial, tomando conhecimento da adoção de tal medida, deixe de confeccionar relatório, providência burocrática sem qualquer vantagem processual. É inclusive conveniente destacar expressamente, no ofício, a desnecessidade do relatório. Libera-se, assim, a Autoridade Policial para a prática de atos investigatórios em outros procedimentos ainda pendentes de finalização. Nesse contexto, a confecção de relatório final de inquérito policial, vários dias após a deflagração do processo criminal (e, conseqüentemente, após a superação da fase pré-processual da persecução penal) constitui um fim em si mesmo, um ato destituído de sentido, devendo ser evitado, até mesmo para se atender ao princípio constitucional da eficiência administrativa (art. 37, "caput", da Constituição da República). Talvez seja necessário entendimento entre o Ministério Público e a Corregedoria-Geral de Polícia, para que este órgão dispense os Delegados de Polícia da apresentação de relatório, em caso de oferecimento de denúncia com base no auto de prisão em flagrante.
Mais uma providência importante é velar para que o Juiz junte aos autos formados a partir do oferecimento da denúncia os documentos que a instruíram, sob pena de se correr o risco de a Defesa alegar dificuldades de adequada preparação para o interrogatório, sem tais documentos. É que, por vezes, os Juízes optam por determinar a autuação da denúncia desacompanhada dos documentos que a instruíram, para que, somente à vista do inquérito policial – que, normalmente, tardará vários dias para chegar ao Judiciário – as peças que compõem a investigação sejam trazidas aos autos. De qualquer forma, eventual insurgência da Defesa contra a colocação das referidas peças na contra-capa dos autos não procede, pois, em se tratando da Defensoria Pública (no Distrito Federal, onde não há Defensoria Pública, o órgão equivalente é o CEAJUR – Centro de Assistência Judiciária), referida instituição recebe cópia do flagrante da mesma forma que o Promotor a recebe (Lei n. 11.449/07, art. 1º, § 1º), tendo acesso, pois, às mesmas provas em que se baseou o Promotor para fazer a denúncia. Além disso, o advogado ou defensor sempre poderá consultar os elementos de prova na delegacia de polícia, caso queira, não se podendo opor a ele qualquer espécie de sigilo. Não é só: ele poderá se entrevistar com o réu antes da audiência. Portanto, aqui não se verifica qualquer lesão à ampla defesa ou ao contraditório.
Finalmente, na cota que acompanha a denúncia, convém seja requerida pelo Ministério Público, ao Juiz, que requisite, ao Delegado, a remessa imediata dos autos do inquérito policial.
Outra prática que pode adotar o Promotor de Justiça para acelerar o procedimento é oficiar diretamente aos órgãos periciais para que remetam, diretamente ao juízo, os laudos confeccionados. Nesse ofício, deverá ser feita menção expressa ao fato de o denunciado estar preso, para abreviar a remessa. Isso evita que o laudo seja remetido para a Delegacia de Polícia e só então a autoridade policial o encaminhe ao juízo. Pode inclusive ser feita gestão junto aos diretores desses órgãos acerca da necessidade de uniformização do procedimento, em caso de denúncia elaborada com o auto de prisão em flagrante.
Em conclusão, o oferecimento de denúncia com base na comunicação de prisão em flagrante é medida que ora se defende por trazer benefícios de várias ordens, trazendo celeridade processual; proporcionando a concessão de liberdade provisória mais rápida, quando o caso; garantindo a vinculação do beneficiário dessa liberdade provisória ao processo, mediante citação pessoal; preservando a prova; e permitindo que a Autoridade Policial se liberte da necessidade de prática de atos desnecessários.
Nota: Agradeço aos colegas André Vinicius Espírito Santo de Almeida, Thaís Freire da Costa Flores, Márcio Vieira de Freitas, Juliana Poggiali Gasparoni e Oliveira e Delson Luiz Bastos Ferro, todos Promotores de Justiça do MPDFT, pelas sugestões formuladas para o aprimoramento do presente texto.
Boletim dos Procuradores da República