Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça
O direito não regula atividades físicas que apenas obedecem ao curso inexorável da natureza. Seria de todo inútil, senão ridículo, prescrever regras de comportamento para intempéries, plantas, minérios ou bichos. Também as funções estritamente biológicas do homem costumam ser irrelevantes para o jurídico, mas não de todo: por exemplo, o sujeito que elimina líquidos urinários em plena via pública, aos olhos e narizes de quem passar pelo local, pode ser responsabilizado criminalmente, a despeito de que o ato, em si, seja uma necessidade fisiológica inevitável. Há muito foram inventados compartimentos reservados para esse tipo de atividade, que não tem a petulância de ver e ser vista.
O que dizer do resultado hidráulico de outras funções, como a sudorese excessiva que brota de uma corrida, ou a consistente cusparada ou então aquela violenta remoção de muco (comprimindo-se com o dedo uma narina, e utilizando-se a outra), que fazem os jogadores de futebol, mesmo com mil câmeras que exibem os mínimos detalhes da partida? Parece que o filósofo Kant tinha obsessão em não desperdiçar líquidos, o que deve ter influenciado de algum modo uma parte (muito lembrada, muitíssimo rechaçada e pouco estudada e compreendida) do pensamento ocidental; no filme "Dr. Fantástico", de Kubrick, o estopim da terceira guerra mundial foi a loucura que um militar americano tinha pela qualidade dos "fluidos corporais" que ingeria.
E o que dizer, ainda, da troca mútua de fluidos corporais naturais que pode até não se deixar enxergar com nitidez, mas que seguramente está a acontecer? Bem, o fato revela ao menos que as pessoas têm, no fundo, um temperamento conservador, porque não reagimos com naturalidade diante desse tipo de cena, como o fazem os primatas que se conjugam na frente uns dos outros sem maiores problemas (salvo os ciúmes do macho-alfa, ou a intempestividade de um bebê que se gruda nas costas de um dos consortes).
Há surpresas, no entanto.Em1998, estava eu no coração do coração da Nova Inglaterra – um banco da praça Copley, em Boston –, e um casal resolve desafiar a ética calvinista que fundou aquela nação. Por volta de oito horas da noite, já estava escuro, mas era perfeitamente conspícuo o espetáculo, que não deve ter durado menos de uns 10 minutos, e que, para a minha admiração, não causou maiores comoções.
Também a repressão frustrada de gases, em circunstâncias mais do que indevidas, como numa solenidade, num elevador lotado ou no exato momento em que alguém vai te dar dois beijinhos, pode trazer conseqüências que se refletirão nos "usos" da sociedade, que funcionam como uma espécie de quase-natureza. O direito é ele mesmo uma técnica especializada de "uso", e portanto de quase-natureza. A lei pode não regular com muita precisão esses particulares, mas ninguém gosta de ser considerado um nojento, um porcalhão.
Dormir é também uma necessidade, uma obrigação que temos com o nosso corpo e que cumprimos todos os dias. Temos de fazê-lo, e o fazemos, bem ou mal. Mas o descanso é mais do que uma premência indiferente ao direito – afinal, não foi a ciência jurídica que metaforicamente cunhou o mote “dormientibus non socorrit jus”, "o direito não socorre os que dormem"? Três exemplos do que digo:
1) O preso em uma cela deveria poder descansar com um mínimo de conforto, não na base do revezamento por falta de espaço;
2) o indivíduo pode exigir que seus vizinhos obedeçam a limites civilizados de barulhos, que não interfiram em sua tranqüilidade doméstica, especialmente noturna;
3) o militar de sentinela ou ronda que cochila em serviço se sujeita à pena de até 1 ano de detenção.
Quando Deus criou Eva, Adão foi posto nos braços de Morfeu, forjando-se nele uma insciente modorra com um toque infra-humano, exatamente para que se pudesse elaborar um trabalho supra-humano. Dormindo, Adão se alterava (no sentido latino), deixando de reger sua existência, para, a partir de então, deixar-se alegremente tiranizar por algo que ele não imaginava que pudesse existir (a mulher). O Livro do Gênesis não especifica, mas acho que antes disso O Homem não precisava dormir.
Jornal de Brasília