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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça

Falam do caráter "intersubjetivo" do direito porque a experiência jurídica somente se dá no contato entre pelo menos duas pessoas. Realmente não tem cabimento em se falar de direito naquela famosa ilha de Robinson Crusoe. Mas não creio que seja por uma questão numérica de indivíduos que se definirá o seu âmbito, ao menos não plenamente. Nem toda forma de dominação é jurídica, assim como nem todo contato interpessoal revela uma forma de dominação. Ouso fazer uma adaptação à fórmula da "tendência ao recurso da coação" (M. Reale) como a essência do direito. Reputo que foi por um erro histórico que se cunhou o adágio ubi socitas ibi jus. Um grupo de bonobos é uma sociedade - e alguém arriscaria dizer que plasmada pelo direito?

O direito é, bem colocado, um dos espaços da reciprocidade. Ou senão: da alternância entre um sujeito e outros sujeitos que se correspondem um ao outro, bem ou mal, quer queiram quer não, mas dentro de certas peculiaridades políticas: não existe direito, isso sim, fora do Estado, e não da sociedade.

Posso me recolher à solidão, mas ainda assim não deixo de causar um certo interesse jurídico porque o simples fato da minha existência traz implicações alternantes. É facílimo demonstrar isso. Deitado em minha cama, na mais profunda modorra ou numa fossa infernal, continuo a ocupar o lugar de alguém, a impedir que minha mulher se case com outro, a dever os impostos que me cabem honrar. Minhas obrigações seguem acordadas: um credor ou um aguazil podem bater à minha porta e me
sacudir. Pior, posso morrer dormindo, vítima de uma bala perdida (foi o que aconteceu com aquele ator, o Cazarré) e causar transtorno para porteiros e vizinhos. Alguns me chorarão.

É mais difícil compreender que, no meu recolhimento voluntário ou filosófico (que Ortega y Gasset, mais uma vez o padrinho dos meus artigos, diria "indecente", mais do que "ciente"), não sou nada que interesse a ninguém (só a Deus). Não me chamo Ivaldo, não sou homem, não tenho 30 e poucos anos, não sou promotor público, não gosto de música assim assado, nem disso ou daquilo. Não sou o que sou, mas quem sou.

A indecência é uma espécie de "através", ou melhor, de recusa. Eu me manifesto como homem - ou a minha "hominidade" se manifesta para fora de mim - porque existem outros homens e, portanto, a generalidade do conceito desembaraça um significado exatamente em um local em que não reina a solidão; por isso acho que reciprocidade não é direito, mas o seu esteio, o seu potencial empírico. Enche e não jorra. No silêncio do meu quarto, procuro encontrar nichos que não foram invadidos por informações culturais, e resisto até o pontoemque nem a linguagem deve ou pode me ajudar. É como se fosse uma aventura medonha, posto que irrecusável, no breu da intuição nessa ilha onde Robinson Crusoe sou eu. Breu e silêncio que enchem e jorram.

Não interajo com uma pedra ou com uma árvore porque elas não interagem comigo. Conversar com uma jaqueira é perigoso (alguém pode ser trancafiado num hospício por isso) ou infantil (menininhas é que falam com bonecas). Estou pouco me importando com que elas pensam sobre mim porque sei que elas não pensam nada. Com um bicho é diferente, porque ele pode me morder, me dar uma chifrada ou me solicitar um afago, uma comida. Não posso ignorar sequer a presença de um pernilongo que não me deixa descansar. Se empresto a minha "hominidade" para um ser que se revela a mim em algum nível de configuração de vida é porque isso faz sentido para mim.

E se busco fazer o mesmo fora de qualquer contexto de alteridade é porque isso também faz algum sentido para mim; se tenho dúvida sobre isso, a busca por esse sentido já é um sentido em si, porque aponta para uma necessidade e permite o gosto de uma esperança. Se não posso ignorar um pernilongo, como não posso ignorar um ideal que me anima? A forma de interação mais elevada é com algo que o sujeito não sabe se existe, mas acredita que sim: Deus. Kierkegaard diz que pecamos quando, diante de Deus, não queremos ser nós mesmos: isso é o "desespero qualificado". Credo ut intelligam é o drama maior e a beleza maior da condição indecente do homem.

Jornal de Brasília

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