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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Muitos romances misturam ficção e realidade, mas isso só pode ser feito adequadamente quando a história imaginada pelo autor observa o mínimo de respeito à história em si, que não pode ser mudada por ninguém, e aos dados da tradição literária.

Um exemplo. Em “Agosto”, de Rubem Fonseca, todo o contexto é verídico: naquele mês de 1954, havia uma crise política no Brasil, que culminou com o suicídio do então presidente da República, Getúlio Vargas.

Vários dos personagens da trama eram reais: o próprio Getúlio, Carlos Lacerda, Gregório Fortunato, major Vaz, promotor Cordeiro Guerra etc.

Outros tantos eram totalmente irreais: comissário Mattos e suas duas namoradas, mãe Ingrácia, o Pádua, o Rosalvo (aquele que vivia dizendo “aí é que está o busílis”). O senador Vitor Freitas é metade-metade, pois é o alter ego do então senador Vitorino Freire, um político aparentemente caricato.

Mas o personagem-chave do livro é o Chicão.

Mattos (ficção) acha que o assassino de Paulo Gomes Aguiar (ficção) é o Anjo Negro (real). Ele vê uma foto deste ao lado do presidente (real), com um anel (real) idêntico ao deixado na cena do crime (ficção). Nesse anel está gravada a letra F, que o policial associa com o nome Fortunato (real), mas que vem de Francisco (ficção). Sabendo que o homicida é negro, ele segue a pista, totalmente falsa, e acaba investigando coisas bem mais graves.

Em “Agosto”, Chicão poderia ou não ter matado Paulo Gomes Aguiar e o comissário Mattos, mas não poderia ter tentado matar Lacerda.

Não estou insinuando que isso seja uma questão “jurídica” e não literária. Do contrário, a ressalva inicial de que “isto é uma obra de ficção” deveria ser obrigatória, ou então muita coisa boa teria sido perdida.

Qualquer pessoa pode escrever um livro que tenha por enredo que Getúlio errou o próprio tiro fatal. Mas modificar biografias é sempre problemático, e mesmo assim requer algum limite a título de premissa, que participa da vida como esta não poderia deixar de ter sido.

Jornal de Brasília

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