Izis Morais Lopes dos Reis
Assistente Social do MPDFT
Ao chegar em casa hoje, 17 de outubro, liguei o computador. Entre as várias bobagens que (todos!) nós acessamos, na minha timeline do Facebook havia uma série de postagens sobre um mendigo bonito de Curitiba. As pessoas se perguntavam se, para aquele moço, alguém negaria casa (comida e roupa lavada). O tom era de brincadeira, claro. Mas não deixou de me causar incômodo. Minha noite já está na metade e as angústias não acabaram ainda. Deve ser falta de vinho, minha irmã concordaria. Como qualquer chacota, a divulgação do mendigo bonito revela as perversidades de nossa ordem social, cultural, moral.
Os nós na minha garganta são vários e tentarei ser breve. A primeira coisa que me vem à cabeça é que, no dia a dia, nós ignoramos a pobreza extrema, a profunda desigualdade social, a falta de insumos básicos para uma vida digna (casa, cama, cobertor). Em segundo lugar, nós legitimamos o reinado do higienismo que faz das pessoas que vivem nas ruas e delas tiram seu sustento partes indesejáveis, abjetas, possíveis alvos das maiores chacinas urbanas da atualidade.
Os dados são alarmantes. Só em Brasília, de janeiro de 2008 a setembro de 2011, de acordo com relatório do Instituto de Medicina Legal, 262 pessoas mortas são consideradas desconhecidas. A maior parte, para não dizer todos, provavelmente estava em situação de rua. Muitas vezes, foram vítimas de assassinatos brutais. Essas pessoas não têm nome: foram ignoradas pelas famílias, pela polícia e por nós, o restante da sociedade.
Por exemplo, em 2009, um servidor do Banco Central foi preso por matar dois moradores de rua na Asa Sul. Ele, à época, disse que resolveu matar os dois homens após supostamente vê-los praticando atos libidinosos na rua e por terem furtado uma tocha: “O sangue subiu à cabeça. Queria limpar eles de lá”.
Nos últimos anos, a cidade foi protagonista de pelo menos dois bem conhecidos episódios de incêndio de mendigos: na década de 1990, adolescentes queimaram vivo um índio pataxó em uma parada de ônibus e, no início de 2012, dois moradores de rua sofreram o mesmo tipo de ataque. Entretanto, não foram só esses dois episódios. O Movimento Nacional de População de Rua do DF afirma que casos semelhantes acontecem constantemente e dá exemplos recentes: uma pessoa foi encontrada atrás do Cine Brasília, um homem foi encontrado morto ao lado da Embaixada do Senegal e uma pessoa não identificada foi achada no Cruzeiro. Todos queimados.
A maior parte de nós, espero, não seria capaz de bater em alguém, ou matar, simplesmente por o outro estar e viver na rua. Entretanto, essas pessoas passam despercebidas pelos nossos olhos. Adquirem relevância somente quando incomodam nos estacionamentos, ao pedir incessantemente para lavar carros ou ao implorar por esmola. Nesses momentos, usamos o artifício da incivilidade: viramos a cara, corremos, fingimos não ouvir. Em outros momentos, as microviolências tomam lugar: pequenos xingamentos são colocados para fora (vagabundo, arruaceiro, sujo) e ações desprezíveis viram instrumento do dia a dia (jogar água pela janela para expulsar pessoas de uma quadra comercial).
Essa é a mesma sociedade que se choca ou faz piada com uma pessoa bonita experimentando uma das mais tristes realidades da urbanidade brasileira. Pouco deveria importar a beleza do rapaz, e sim a indignidade por ele sentida na pele. Porém, nós, incrivelmente, em vez de tomarmos as rédeas do reconhecimento moral de outros seres humanos, preferimos seguir pelo caminho das notícias esdrúxulas, do desprezar a dor alheia (desse homem e de sua família) e, especialmente, da notícia com pouca capacidade crítica e analítica sobre o sofrimento e sobre nossa cultura do desprezo por humanos alocados no mesmo espaço do lixo. Enfim, espero que o desabafo sirva para aliviar a garganta.
Correio Braziliense