O chamado “Homem de Piltdown” chegou a ser celebrado por décadas como um achado de extraordinário valor antropológico. Inaugurou gênero próprio e desfrutou de todas as honras que poderia merecer. Mas era uma mentira monstruosa, pois se tratava de um cérebro humano moderno enxertado por uma mandíbula de orangotango.
O que intriga nesse caso são duas coisas.
A primeira é que foram autoridades respeitabilíssimas que homologaram a farsa. Sir Arthur Keith foi o principal paleontólogo de sua época, guardião da Coleção Hunter da Escola Real de Cirurgiões e ex-presidente do Instituto de Antropologia. Sir Arthur Woodward era considerado a maior sumidade do mundo em fósseis de peixes, e foi o curador dos museus Britânico e de Geologia Britânico. Pierre Teilhard de Chardin era um jovem francês brilhante, padre, teólogo e paleontólogo; estava na trincheira quando Charles Dawson fez a suposta recuperação.
Além disso, não se sabe até hoje quem foi ou foram o autor ou os autores da fraude. Os dedos apontam para o próprio Dawson, o “descobridor” do fóssil, mas essa explicação é fácil (ele era o zé ninguém da história e estava morto quando o Homem de Piltdown voltou à polêmica) e inútil, porque a chancela científica, afinal, não foi de sua lavra.
Mas o caso vale também como reflexão sobre o papel e o valor da ciência. Toda a atividade e todos os seus produtos, por mais consistentes e honestos que sejam, devem ser vistos com a nota da relatividade. Ou bem são fortes demais, e uma teoria deixa de ser o que é, ou seja, se transubstancia num fato que se incorpora ao patrimônio do conhecimento objetivo (exemplo máximo: tese heliocêntrica), ou se contenta em ser uma possibilidade provisória de explicação da realidade, que pode, deve e precisa ser substituída por outra explicação melhor. Esses são os dois caminhos possíveis. Quaisquer outros levarão à vigarice, sede de poder político, interesse financeiro, vaidade ou intriga pessoal, arrogância intelectual, ou superstição barata.
Jornal de Brasília