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Rogerio Schietti Machado Cruz
Procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Há 14 anos, no Rio de Janeiro, uma criança de 7 anos, Mariana, perdeu a vida em decorrência de um disparo de arma de fogo efetuado por um sargento da Polícia Militar, que teria avistado alguém empunhando uma metralhadora dentro do automóvel em que a pequena Mariana se encontrava junto com seu irmão de 5 anos e sua mãe. Detalhe: a metralhadora era de brinquedo!

Trocam-se os personagens, mas não a notícia: os assassinos continuam a ser policiais despreparados e ignorantes; a vítima, uma criança de 3 anos, João Roberto Soares, que também estava na companhia da mãe e do irmão, de nove meses, dentro de um automóvel na capital fluminense. O detalhe da notícia de agora não é muito menos estarrecedor do que a tragédia anterior: a mãe, percebendo que uma viatura da Polícia Militar perseguia um outro automóvel, encostou seu veículo para dar passagem àqueles que lhe deveriam prestar segurança, recebendo, como resposta, uma saraivada de tiros disparados na direção de seu carro.

Disse, aqui neste veículo de comunicação, e o digo novamente, que o triste episódio obriga a sociedade a refletir sobre a forma irresponsável e despreparada com que alguns agentes do Estado responsáveis pela segurança pública usam as armas que lhe são postas à disposição. A morte é dolorosa em qualquer hipótese, mas ela é muito mais revoltante quando causada pelo descaso e desprezo à vida humana.

Nos “Princípios básicos sobre o emprego da força e de armas de fogo pelos funcionários encarregados de fazer cumprir a lei”, documento da ONU, são feitas várias recomendações a esses agentes da segurança pública. Devem eles somente recorrer ao emprego da força e de armas de fogo em situações excepcionais, “quando outros meios resultem ineficazes ou não garantam de nenhum modo a obtenção do resultado previsto”. Não podem, assim, empregar armas de fogo “salvo em defesa própria ou de outras pessoas, em caso de perigo iminente de morte ou de lesões graves”. Tratando-se de uma fuga, o disparo de arma de fogo somente se justifica “na hipótese de resultarem insuficientes medidas menos extremas” e “quando seja estritamente inevitável para proteger uma vida”.

Essas recomendações parecem ser desconhecidas da maioria de nossas corporações militares, pois amiúde nos deparamos com notícias de que determinado policial feriu ou matou alguém porque este não atendeu a uma ordem para estacionar o veículo em uma blitz, ou porque se tratava de um suspeito que “correu da polícia”.

Várias razões podem determinar a desobediência do motorista em parar o automóvel: ser foragido da polícia, ter acabado de furtar o automóvel, não possuir habilitação ou os documentos do veículo, estar embriagado, drogado, assustado, ou simplesmente sem vontade de cumprir a determinação policial. Em nenhuma dessas situações seria legítimo ao policial efetuar disparos em direção ao veículo para levar o seu motorista a pará-lo. Mesmo na hipótese de que o motorista seja supostamente autor de um crime grave, o disparo de arma de fogo só é razoável se a fuga representar um concreto risco à vida de alguém.

O conjecturado roubo já se consumou, não se tratando, pois, de legítima defesa de uma injusta agressão ao patrimônio alheio já ocorrida. Igualmente não se poderia sustentar a hipótese de estrito cumprimento de dever legal, pois não se situa no limite do aceitável valer-se o Estado do recurso extremo para prender criminosos somente porque estes não colaboraram para a própria prisão. Não é demais salientar a possibilidade de ter havido engano na identificação do suposto autor do noticiado roubo, ou mesmo a possibilidade de estar, dentro do veículo, pessoa inocente ou mesmo um refém do criminoso, hipóteses que, por si só, desautorizam qualquer atitude mais violenta e perigosa por parte da polícia.

Ainda sob a ótica da razoabilidade da atuação estatal, e com mais forte razão, seria extremamente abusivo o uso de arma de fogo para conter alguém que não parou na blitz porque está inabilitado a dirigir veículo, ou porque não está de posse dos seus documentos, ou, ainda, porque bebeu uma ou outra dose de álcool.

Quantas crianças, como João Roberto e Mariana, ainda precisarão ser assassinadas para que esses desvios policiais sejam definitivamente banidos? Todos esperamos que não sejam necessários outros 14 anos para que tragédias como essas constituam apenas uma triste recordação do passado.

Correio Braziliense

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