José Theodoro Corrêa de Carvalho
Promotor de Justiça do MPDFT
O Senado Federal encomendou a uma comissão de especialistas a elaboração de um projeto de reforma para o Código Penal de 1940, estando o tema em discussão na referida casa legislativa. Analisando-se a redação dos artigos propostos sobre o tráfico e consumo de drogas, observam-se, entretanto, alguns dispositivos surpreendentes, como (1) a desconsideração do tráfico de drogas como crime hediondo; (2) a redução da pena para diversas figuras do tráfico de drogas; e (3) a isenção de pena para o porte de drogas para consumo, com a fixação de patamar objetivo da quantidade de drogas para tal enquadramento.
No artigo 56 do anteprojeto, a comissão sugere que o tráfico só será considerado hediondo quando o réu foi reincidente. Surpreende que um grupo de especialistas faça uma proposta totalmente atécnica e inconstitucional. O que define a hediondez de um delito é o horror da conduta e de seu resultado, não o fato de aquela conduta ter sido praticada uma ou duas vezes. Uma conduta é hedionda, mesmo que praticada uma única vez. Não é possível considerar que o crime seja hediondo apenas quando reiterada a prática.
Também é absurdo que as penas tenham sido reduzidas em diversos crimes, como ocorre, por exemplo, com a fabricação de maquinário, o financiamento para o tráfico, a associação para o tráfico e a indução, instigação ou auxílio ao consumo de drogas. Parece que a comissão não considera o crime de tráfico merecedor de repressão diferenciada.
Retirar sua natureza hedionda, reduzir penas e permitir benefícios máximos na dosimetria resulta em estímulo à traficância. A aplicação cumulativa dos diversos benefícios previstos (redução de 2/3 e progressão com 1/6 da pena cumprida, para réus primários), resulta em uma pena de apenas três meses e 10 dias de prisão para o tráfico. Mas a situação pode ser ainda mais vantajosa, porque o projeto permite regime aberto (art. 49) e substituição por penas alternativas (art. 61) para o exemplo citado, o que indica que o traficante primário sequer ficará preso.
Também é extremamente criticável a opção pela descriminalização do porte de todas as drogas para consumo. Não deve ser esquecido que o problema do consumo de drogas não é exclusivamente uma questão técnico-jurídica, mas algo que a sociedade vivencia no cotidiano, com conflitos de natureza familiar, laboral, social e também no campo da violência urbana.
A liberação do uso, certamente, levará ao aumento do número de consumidores, ao estímulo e aumento do tráfico e dos problemas decorrentes. Seria criada uma nova geração de pessoas com baixa percepção do risco que as drogas ocasionam. As drogas legalizadas têm um número de consumidores muito maior do que o número de usuários de drogas ilícitas, o que indica que a liberação poderia levar a patamares similares.
Observe-se que, aproximadamente, 75% da população já provou álcool, contra menos de 10% que o fez com a maconha (dados da ONU). Também não é demais reafirmar que grande parcela dos crimes (furtos, roubos, lesões, estupros, homicídios, etc.) está associada aos efeitos do consumo de drogas ou à tentativa de obtenção de recursos ilícitos para a aquisição da próxima dose.
Também é totalmente absurda a tentativa de fixar determinada quantidade para a diferenciação entre o usuário e o traficante. Caso fosse aprovado que o usuário pode portar quantidade suficiente para o consumo médio individual por cinco dias, certamente, tal regra geraria uma autorização legal para que os traficantes portassem significativas quantidades de drogas, sem que pudessem ser incomodados pela polícia, o que reduziria a eficácia do difícil trabalho policial de repressão ao tráfico.
Como aproximadamente 89% da população é contra a liberação (DataSenado, outubro de 2012), espera-se que o parlamento rejeite a proposta, efetue modificações que protejam a sociedade dos males das drogas e adote, paralelamente, ações de prevenção e tratamento.
Correio Braziliense