O sistema jurídico brasileiro elegeu a licitação como mecanismo prévio para a formalização de contratos com a administração pública. A regulamentação dessa escolha veio com a Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, que estabeleceu a sistemática a ser observada por aqueles que pretendem celebrar um contrato administrativo válido. O cerne desse sistema passa, por óbvio, pela observância rigorosa dessa escolha, ou seja, que uma licitação seja efetivamente realizada. Sua dispensa ou inexigibilidade são permitidos em situações excepcionais, desde que observadas formalidades rígidas, uma a uma indicadas na referida lei.
Sob a perspectiva da política criminal, a referida lei está em consonância com o texto constitucional, corresponde ao cumprimento de um mandado constitucional implícito de criminalização com o objetivo de tutelar a moralidade administrativa, a impessoalidade, a economicidade e a eficiência (art.22 XXVII; 37 caput e XXI; 173 III; e175 caput). Para tanto, pode o legislador, na elaboração do preceito primário, construir tipos de perigo abstrato, de mera conduta, formais e materiais. Ao julgador, nesses casos, compete analisar a intensidade do preceito secundário, sem examinar em abstrato a opção legislativa atinente à conduta. Em sentido semelhante, no exame da tipologia do perigo abstrato, entendeu o STF no HC 104410, de 27/3/2012.
No tocante à dogmática exarada na Lei 8666/1993, com o escopo de proteger essa escolha, ou seja, a efetiva realização da licitação, a própria lei estabeleceu que a dispensa ou a inexigibilidade indevidas seriam classificadas como crime, conforme previsão feita em seu artigo 89. Mas o rigor foi além. Esse mesmo artigo estabeleceu que a não observância de formalidades, ainda que presentes situações de dispensa ou inexigibilidade, daria ensejo ao cometimento do mesmo crime. Em resumo, dispensar ou inexigir ilegalmente licitação ou deixar de observar formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade são crimes. É o que está escrito na lei, nada mais, nada menos.
A redação desse artigo revela de forma precisa tratar-se de um crime de mera atividade, em que não se exige qualquer resultado naturalístico para a sua consumação senão o próprio desvalor da conduta de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses permitidas ou mesmo não obedecer às exigências do procedimento de dispensa ou inexigibilidade (art. 26, parágrafo único).
A lei, no dispositivo em comento, não se preocupou com eventual efeito financeiro deletério ao patrimônio público. Nem sequer se essa conduta visa a desfalcar ou a causar prejuízo ao caixa do Estado, casos em que o servidor público e aqueles que lhe auxiliarem responderiam por peculato, não por dispensa ilegal de licitação.
A própria data em que os crimes de dispensa ou inexigibilidade de licitação ou inobservância das formalidades ocorrem revela a impossibilidade de se exigir a comprovação de prejuízo para sua configuração. É que o crime se torna perfeito quando os servidores públicos responsáveis, individualmente ou em colegiado, editam o ato de ratificação da dispensa ou da inexigibilidade, enquanto que o prejuízo, se houver, somente é possível de ser aferido ao final da execução do contrato. Aliás, a prática administrativa e a própria lei revelam tratar-se de pessoas diferentes, ou seja, as que editam o ato de ratificação e as que promovem a execução do contrato administrativo.
Como o prejuízo eventualmente revelado na execução do contrato, feita sob a responsabilidade de um servidor, poderia ser imputado a outros que, meses ou anos atrás, editaram o ato de ratificação da dispensa ou inexigibilidade ilegais? Se essa vontade de desfalcar o patrimônio público já era presente desde o início, repetimos, a imputação se fará por peculato.
Todas essas questões estão sendo novamente debatidas pelo Superior Tribunal de Justiça, com decisões editadas, ora num formato, ora noutro, exatamente no oposto, às vezes pelos mesmos julgadores (v. g. REsp 1133875/RO e AgRg no AREsp 92923/RS). Tudo girando em torno da questão da, incongruente, permita-nos, exigência de comprovação do prejuízo ao patrimônio público para configuração do crime. Chegou-se a fazer referências inclusive à lei de improbidade administrativa, que foi editada mais de um ano antes da Lei 8.666/1993, quando nem sequer o crime ora em debate havia sido criado.
A prosperar uma leitura mais libertária, exigindo-se elementos que a lei não apontou, impróprios na prática de serem levantados e imputados ao tempo da consumação do crime, a licitação se tornará uma faculdade definida segundo o risco: não existindo ou não provado o prejuízo, a contratação direta estará legitimada, ainda que sustentada em documentos falsos, direcionamento ou fraudes não ostensivamente financeiras, com enorme ofensa à moralidade administrativa.
Revista Eletrônica da Justiça Federal da 1ª Região