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Teresinha Inês Teles Pires
Promotora de Justiça do MPDFT

Sumário

1. Introdução. 2. Liberdade de consciência e de crença na dogmática jurídica e na Constituição. 3. Âmbito de proteção e reservas legais. 4. Hermenêutica constitucional e estado democrático de direito. 5. O princípio da separação e da não confessionalidade. 6. Liberdade Religiosa e Pluralismo Político. 7. Conclusão.

1. Introdução

Este artigo tem por objetivo colher os posicionamentos doutrinários pertinentes à discussão do direito à liberdade de consciência e de crença e sua interação com outros princípios constitucionais, além de problematizar as situações fáticas que possam se apresentar perante o intérprete a respeito da matéria.

Considerando o pouco desenvolvimento do assunto no universo jurídico, seja pela ciência do direito, seja pela prática jurisdicional, procurar-se-á abordar a posição de tais liberdades no contexto da teoria dos direitos fundamentais constitucionais, bem assim no contexto sociopolítico relacionado à busca pelo reconhecimento de direitos e aperfeiçoamento do ideal democrático.

2. Liberdade de consciência e de crença na dogmática jurídica e na Constituição

A Constituição Federal de 1988 estabelece os princípios da liberdade de consciência e da liberdade de crença como direitos individuais fundamentais (art. 5o, inciso VI). A liberdade de consciência apresenta-se como

um conceito mais amplo, que incorpora seja a liberdade religiosa, de professar qualquer crença religiosa, seja a liberdade de ter convicções filosóficas destituídas de caráter religioso (MIRANDA, J., 1993, p. 365). Desse modo, para Jorge Miranda, assim como para a doutrina portuguesa em geral, a liberdade religiosa deriva da liberdade de consciência. Por outro lado, a doutrina brasileira, na esteira de Pontes de Miranda, toma como matriz da liberdade religiosa a liberdade de pensamento, tratando-se a primeira de uma especialização da segunda. Isso no sentido de que a liberdade de pensamento se subdivide em “liberdade de religião e liberdade de pensamento a- -religioso ou antirreligioso” (MIRANDA, F., 1968, p. 109, 116).

Essa distinção dogmática, em realidade, conduz aos mesmos resultados (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 115), sendo importante destacar a opção constitucional pela ampla liberdade conferida aos indivíduos no que concerne à hierarquia de valores a ser adotada perante sua própria consciência, o que configura uma reserva pessoal de intimidade e autodeterminação. Pode-se dizer que essa permeabilidade entre os conceitos de liberdade de consciência, liberdade de pensamento e liberdade religiosa importa em uma interdependência complexa, especialmente quando se considera ainda a vinculação dos mesmos a outros princípios inerentes à intimidade individual, como o princípio da formação da identidade e da personalidade.

Problemática questão inerente à não completa autonomia de todas essas categorias jurídicas se revela quando as pensamos no campo da conduta humana, da liberdade de atuação conforme as convicções pessoais, supondo-se a necessidade de se atribuir um tratamento consentâneo a ambos os aspectos (convicções e práticas).

O “direito de personalidade em geral”, na medida em que diz respeito à formação da identidade do sujeito, impõe limites à intervenção estatal, pois envolve “a liberdade de não ser onerado de uma maneira que afete massivamente” o plano íntimo da construção da consciência individual (PIEROTH; SCHLINK, 2008, p. 113)1.

Particularmente as convicções religiosas impõem ampla proteção da conduta, tendo em vista o significado ético das crenças religiosas, as quais se refletem em hábitos culturais e sociais, como, por exemplo, o do uso do véu ou outros símbolos. Outro exemplo é o da objeção de consciência, pela qual se reserva ao indivíduo o direito de recusar-se à prática de determinado ato, por motivo de crença. Mencionem-se, nesse sentido, o caso da pessoa que não aceita a transfusão de sangue por professar a religião Testemunha de Jeová, a recusa ao serviço militar e a recusa do médico a realizar o aborto nos países nos quais sua prática é legalizada.

Interessante discussão é travada no que concerne às condutas penalmente tipificadas. A razão de ser “das medidas proibitivas” “de natureza penal” reside na proteção a terceiras pessoas, isto é, em regra uma ação é definida como crime quando sua prática produz algum tipo de dano a outrem. Além disso, exige-se a capacidade de discernimento do agente. Alguns autores entendem, ainda, que o “consentimento do ofendido” pode configurar “excludente e tipicidade”, em se tratando de bem jurídico “disponível, eis que nessa hipótese o titular do bem jurídico protegido abre mão da tutela penal”. O mesmo entendimento aplicar-se-ia às “autolesões”, no mais das vezes motivadas por crenças pessoais (MARTINELLI, 2009, p. 73, 75, 84, 86).

Mais complexa se torna a análise da incidência em conduta criminosa do ponto de vista do conceito de objeção de consciência. Pense-se na situação em que o indivíduo pratica uma ação criminosa ciente desse fato porque subjetivamente acredita que a ação é justa. Esse agente pode ser chamado de “agente por convicção”. Obviamente o “direito positivo” prevalece sobre a “convicção subjetiva”; porém, a proteção da liberdade de consciência possibilita a reserva pessoal no campo das convicções morais e da conduta humana quando essas convicções ou condutas são verdadeiros componentes da personalidade, como já dito. Desenvolveu-se, assim, na doutrina o pensamento de que, nesse tipo de situação, quando “apenas se atingirem liberdades e direitos fundamentais de terceiros de forma periférica”, a ponderação de valores “penderá a favor do fato consciência” (convicção subjetiva) (ROXIN apud WEINGARTNER NETO, 2007, p. 313-315)2.

Na vertente subjetiva, as liberdades de consciência e de crença garantem “a liberdade de confessar uma fé ou uma ideologia” (liberdade religiosa negativa); nesse âmbito, a Constituição protege “a personalidade espiritual moral”, assegurando-se uma livre caracterização do certo ou errado nas questões existenciais, o que não significa total ausência de limites, como se verá adiante. Por outro lado, como elemento da ordem objetiva (liberdade religiosa positiva), aquelas mesmas liberdades garantem “a neutralidade religiosa e ideológica do Estado” (HESSE, 1998, p. 298-300). As duas dimensões (subjetiva e objetiva) aumentam a densidade jurídica do direito em análise, considerando que cada uma delas comporta ainda outras subdivisões: os direitos subjetivos podem ser individuais ou coletivos (das pessoas jurídicas), enquanto o “prisma objetivo” apresenta a categoria dos “deveres de proteção” e a categoria das “garantias institucionais” (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 68).

Sendo assim, as liberdades de consciência e de crença estruturam-se em uma perspectiva multidimensional, devendo, em todas as duas distinções dogmáticas, conectar-se ao princípio maior da dignidade da pessoa humana.

3. Âmbito de proteção e reservas legais

O âmbito de proteção da liberdade de consciência (sentido amplo) deve ser expansivo o bastante para incorporar em seu conteúdo as diversas e multifacetadas mundividências filosóficas, ideológicas e religiosas. Além disso, tem que se pautar pela não violação do princípio da neutralidade estatal.

Na teoria de Robert Alexy (2008), os princípios são distintos das regras por apresentarem maior grau de generalidade. O autor cita como “um exemplo de norma de grau de generalidade relativamente alto” o princípio da “liberdade de crença”. Na seara da colisão entre princípios, o autor afirma que “um dos princípios terá que ceder”, o que não importa na declaração da sua invalidade, mas, sim, na “precedência” do outro, dadas as circunstâncias do caso concreto. Como se sabe, para Alexy (2008), a tensão entre dois princípios soluciona-se por meio do “sopesamento” dos interesses em conflito. Entretanto, existem os direitos não passíveis de restrições, em tese, pela ausência de reserva expressa (simples ou qualificada), entre os quais se inclui a liberdade de crença; em outra linha de raciocínio, do ponto de vista estrutural, a ausência de reserva legal não atribui proteção absoluta a esses direitos, que podem ser limitados em face de colisão de interesses (ALEXY, 2008, p. 87, 93, 95, 124). Gilmar Mendes (2009) esclarece que a restrição de um direito fundamental sem reserva expressa se legitima diante de uma colisão, com fundamento nos “direitos de terceiro ou em outros princípios de hierarquia constitucional”, lembrando, obviamente, que tal restrição é limitada, sob pena de se atingir “o núcleo essencial do direito fundamental” (MENDES, 2002, p. 240-241, apud WEINGARTNER NETO, 2007, p. 195-196).

Outro problema é delimitar normativamente em que circunstâncias se considera atingido, em sua essência, um direito fundamental. Gavara de Cara (1994), ao abordar as teorias subjetivas e objetivas a respeito do conteúdo essencial, aponta como um dos caminhos para essa resposta a teoria de Ekkehart Stein, segundo a qual, se a limitação chega ao ponto de os indivíduos não poderem “de nenhuma maneira desfrutar dos interesses protegidos pelo direito fundamental”, isso significa que seu conteúdo essencial foi afetado. Outro critério digno de referência, para Gavara, é o apontado por Herbert Krüger, que “consiste em determinar em cada caso concreto se a finalidade do direito fundamental, depois da limitação”, foi realizada ou não. Essas duas posições adotam a concepção de que os direitos fundamentais são direitos subjetivos públicos do indivíduo. No campo das teorias objetivas, que definem como objeto de proteção a própria “norma objetiva de direito fundamental”, Gavara menciona, entre outras, as teorias de Friedrich Klein, e seu destaque para a compreensão de que os direitos fundamentais não são só “direitos públicos subjetivos mas também garantias institucionais, normas principais e regras de interpretação”, e a teoria de Eike Von Hippel, que considera “que as normas de direitos fundamentais regulam questões básicas da ordem social”. Por fim, ainda segundo Gavara (1994, p. 28, 32, 36, 38), Hesse tenta desconstruir a ambivalência entre as vertentes subjetiva e objetiva, propondo uma “intercambialidade de ambos os aspectos”, no sentido de ambos comporem o objeto protegido.

Em face da natureza abstrata da formulação constitucional desses direitos, a fixação de limites ao seu exercício remete o legislador e intérprete a permanente tensão entre a norma jurídica e a realidade fática3. Não é possível restringir direitos com espeque na pura literalidade textual positiva, sem a consideração dos valores culturais, sociais e também religiosos inerentes a uma determinada sociedade.

As “novas conformações” “hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade”, de modo a equilibrar “o interesse individual e o interesse da comunidade”. A respeito do controle de constitucionalidade das leis, a doutrina enfoca o complexo tema da definição do “excesso de poder legislativo”, que infringe o princípio da proporcionalidade. O legislador, ao impor restrições aos direitos fundamentais, não tem só a faculdade, mas a “obrigação de observar rigorosamente os limites estabelecidos pela Constituição”, e não pode também omitir-se em seu “dever” “de legislar”, incumbindo-lhe concretizar as “garantias institucionais” (MENDES, 2009, p. 19, 20, 47, 117). No que tange ao “controle do direito pré-constitucional”, Gilmar Mendes (2009, p. 216) sugere que a “consolidação da ADPF” (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) “poderá ser” “um instrumento adequado”.

O aspecto subjetivo do direito à liberdade de consciência e de crença, como já adiantado, associa-se aos direitos à intimidade, à identidade e à formação da personalidade, e seu aspecto objetivo, à garantia da neutralidade estatal, que, diante do livre exercício de profissões religiosas, deve abster-se de favorecer a prevalência de uma doutrina específica no âmbito do espaço público. Cabe aqui a pergunta: como o Estado, em seu papel garantidor do exercício dessas liberdades, inclusive por meio de leis restritivas de direitos (no que pese à não previsão constitucional) para a composição dos interesses conflitantes, irá assegurar “a igualdade entre as religiões e a liberdade de consciência no espaço público” (DINIZ, 2010, p. 25) e na esfera privada da autodeterminação individual? É dever do Estado acolher em seu arcabouço jurídico-político valores filosóficos e religiosos minoritários como possibilidades de escolha individual, atenuando a dominação histórica de uma específica doutrina4. Nessa seara entra a exigência constitucional da proibição do proselitismo religioso, entendido doutrinariamente como manifestação de dogmatismo ou sectarismo tendente à discriminação social de credos religiosos não prevalentes culturalmente. Certamente a Constituição permite a expressão de convicções religiosas, mas não ao ponto de se promover a arregimentação manipulatória com o intuito, muitas vezes, de se obter poder político.

4. Hermenêutica constitucional e estado democrático de direito

Os parâmetros estabelecidos pela hermenêutica constitucional fornecem subsídios para a concretização das liberdades individuais. Nas hipóteses em estudo, devido ao nível elevado de abstração e generalidade, o sopesamento dos valores envolvidos, em sua integralidade, coloca o intérprete em uma condição singular. Das diferentes posições doutrinárias acima sintetizadas, além de várias outras não mencionadas, infere-se que a definição dos elementos componentes do “núcleo essencial” do direito à liberdade de consciência ou crença envolve aspectos éticos, ideológicos, culturais, sociais e intrapsíquicos. Como destaca Ortega y Gasset (apud SILVA NETO, 2008, p. 86), “eu sou: eu e minha circunstância”; ou, no dizer de Francesco Ferrara (1921, p. 36), “é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada”.

Pressupondo-se a insuficiência do “positivismo jurídico” e da “interpretação lógico-semântica” na solução das colisões de interesses surgidas nos casos concretos, a interpretação jurídica, no juízo de aplicação, assume um “caráter prático” e “aberto”, em vista das especificidades das situações existenciais apresentadas a exigir uma resposta por parte do Estado. O método “hermenêutico-concretizador” é o caminho adequado para a resolução das mais variadas questões afetas à liberdade de consciência e religiosa por direcionar-se aos problemas efetivos com os quais o intérprete se depara em um determinado contexto sociopolítico. Ressalte-se que a “pré-compreensão do intérprete”, no referente ao sentido e “conteúdo da norma”, pautar se-á por expectativas e valores subjetivos, tendo por paradigma o “princípio da interpretação conforme a constituição” (SILVA NETO, 2008, p. 89-91, 93).

Esse enfoque hermenêutico é bastante acentuado na proposição de Peter Häberle da “Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição”, que possibilita uma permanente “revisão” da interpretação em conformidade com os “novos desenvolvimentos da realidade e da publicidade”. O autor confere à “esfera pública” e às “forças sociais” uma dimensão primordial, em especial na concretização dos direitos fundamentais, e atribui à “práxis cotidiana”, construída pelo “círculo de participantes”, o papel garantidor do exercício das liberdades individuais e coletivas (HÄBERLE, 2002, p. 9, 27, 33, 37) pela mediação do livre fluir do debate e da participação de todos os cidadãos, não somente dos detentores do poder ou ocupantes de cargos públicos. Häberle (2002, p. 40) adverte, contudo, que o processo discursivo está sempre submetido a “ameaça”, devendo ser conduzido pela “ordem liberal-democrática” como um “modelo ideal” de sociedade aberta. A aplicabilidade dessa teoria no campo da liberdade de consciência/religiosa é a mais extensa possível, haja vista a velocidade em que os valores individuais ou comunitários se modificam nos diversos contextos históricos das civilizações. A interpretação da constituição deve caminhar no mesmo passo das mudanças sociais e, no âmbito em investigação, no mesmo passo da introdução de novas tendências e interações, principalmente na prática religiosa. A conduta humana não se desvincula dos valores e crenças pessoais e não pode ser juridicamente sopesada de forma dissociada desses referenciais individuais. Novos enfoques interpretativos são necessários, na prática jurídica, para a extensão desses direitos com a inclusão das ideologias e crenças minoritárias.

Do ponto de vista político, defende-se, nesse texto, a perspectiva de fortalecimento de mecanismos democráticos, a serem postulados pela ciência e prática do direito, que promovam uma maior descentralização do debate público, uma mais efetiva participação das entidades representativas de todos os setores da sociedade, como associações e movimentos sociais. Digno de menção, nesse ponto, é o esforço de Unger (2004) na defesa do aprimoramento institucional. Sua conclamação ao “experimentalismo democrático” incita a “prática permanente de reforma radical” das instituições políticas e, em relação à participação popular no processo decisório, a conformação a esse anseio do “arcabouço jurídico partidário”. Essa é a “vocação do direito contemporâneo”, a “formação de uma ordem política e econômica” que acolha os “direitos de escolha” e o “gozo efetivo” das liberdades institucionais. O autor propõe como método de realização do “projeto democrático” o que ele chama de “democracia mobilizadora”, cuja direção indica a revisão das “estruturas arraigadas” da vida política. Em consonância à advertência de Häberle (2002), quanto à “ameaça” de esvaziamento da democracia participativa, Unger (2004) chama a atenção para o risco do “conluio entre poder político e vantagem econômica”. Além disso, os grupos mais engajados podem “tomar o controle das instituições participativas”, enquanto os “ausentes, distraídos e taciturnos” mantêm-se à margem do espaço decisório (UNGER, 2004, p. 16, 27, 41, 198-199, 205). Essa exclusão é patente no contexto da participação de entes religiosos e seus representantes no processo político. Ninguém há de negar que não há grupos organizados de pessoas que professem crenças religiosas minoritárias ou que simplesmente não professem crença alguma (agnósticos e ateus); com isso, as decisões políticas passam ao largo do direito de participação desse universo específico de pessoas, embora elas tenham igualmente que se submeter às regras morais e normas jurídicas vigentes.

5. O princípio da separação e da não confessionalidade

O processo de secularização, que fez imperar a separação entre Estado e religião e a proibição do ensino confessional (de conteúdo missionário e pretensões clericais), partiu da necessidade de se combater a intolerância religiosa, presente particularmente no mundo ocidental em face da preponderância do cristianismo e do esvaziamento das doutrinas divergentes. Alguns países adotam uma religião oficial, sendo, portanto, Estados confessionais; é o caso da Argentina (catolicismo). Outros abraçam o regime da separação, porém reconhecem ao mesmo tempo “algum tipo de privilégio para determinada Igreja”, como, por exemplo, Portugal, que, “com a reforma da Lei constitucional no 3, de 1971”, adota a religião católica “como religião tradicional da Nação” (TAVARES, 2009, p. 54, 59). Por outro lado, grande parte dos países, como França, Espanha e, também, Brasil, são repúblicas laicas. No caso do Brasil, a laicidade está assegurada pela proteção constitucional da liberdade de consciência e de crença.

Esclareça-se que o termo “laicidade” não significa hostilidade às práticas religiosas, mas apenas o caráter não confessional do Estado. No Brasil, inclusive, a laicidade não é proclamada como “neutralidade confessional” (que sequer admitiria a presença de símbolos religiosos nos locais públicos), mas antes como “pluriconfessionalidade”, haja vista a aceitação de tais símbolos em nossas instituições e a participação das religiões nas decisões políticas. Como se sabe, “há representantes religiosos em cargos políticos e públicos” (DINIZ, 2010, p. 23), em número expressivo, o que pode, inclusive, resultar em grave situação de faccionismo5. A Constituição brasileira, no artigo 19, inciso I, proíbe ao Estado estabelecer aliança ou subvencionar cultos religiosos ou igrejas, “ressalvada” “a colaboração de interesse público”. Razões de ordem cultural e sociológica justificam essa previsão nas hipóteses em que as atividades desenvolvidas por instituições religiosas exerçam alguma função social em benefício da coletividade, mas não se pode perder de vista que se trata de uma exceção, devendo ser admitida com grandes reservas.

Um problema complexo relacionado ao esforço para concretizar o direito fundamental à formação de convicções morais e religiosas individuais manifesta-se na questão da proibição do ensino confessional (oferecido por representantes de igrejas) nas escolas públicas. A Constituição (art. 210, parágrafo primeiro) estatui que o ensino religioso nas escolas públicas é facultativo. A Lei 9.475/1997 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB) deixou para as secretarias estaduais “a regulação do ensino religioso”, dando origem a leis inconstitucionais, como a Lei 3.459/2000 do Rio de Janeiro que prescreve a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas e sua disponibilização na forma confessional. Essa lei “está sendo contestada” no STF “desde 2004”. Outros estados, como o Acre, a Bahia e o Ceará, igualmente promovem o ensino confessional (DINIZ, 2010, p. 41, 42, 45), o que viola o caráter vinculativo dos direitos fundamentais nas três esferas de poder institucional.

No direito internacional, duas experiências são tidas como modelos “no acolhimento do princípio da separação”: o modelo americano, com a metáfora do wall of separation e da establishment clause, e o modelo concordatário europeu, calcado em tratados celebrados entre os Estados e a Santa Sé (Estado do Vaticano) em matérias de natureza religiosa. Nos Estados Unidos, preza-se fortemente pelo distanciamento e pela neutralidade do Estado em face das questões religiosas, embora a Suprema Corte apresente atualmente uma tendência a atenuar o “separatismo estrito” na tentativa de “acomodar o fenômeno religioso” e de favorecer ações positivas do Estado em prol da secularização e da efetividade da liberdade religiosa (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 151-156).

Muito mais problemático é o sistema concordatário, que infringe os princípios do constitucionalismo pela perpetuação de privilégios e discriminações. O Brasil não tem tradição de celebrar concordatas, mas, nas últimas décadas, algumas foram efetivadas, como o Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé sobre Assistência Religiosa nas Forças Armadas (1989) (MAZZUOLI, 2009b, p. 257) e a Concordata que previu a “confessionalidade do ensino religioso” católico, acordo esse aprovado em 2009 (DINIZ, 2010, p. 43). Esses acordos, assim como quaisquer concordatas, são inconstitucionais por resultarem na concessão de “um tratamento especial” “aos cidadãos católicos” em relação aos “não católicos”, criando “distinções” entre brasileiros (MAZZUOLI, 2009b, p. 258- 259), no que tange ao regime de liberdade religiosa e de pluriconfessionalidade. Além das concordatas, o Brasil ratificou vários tratados internacionais em geral, que contêm disposições pertinentes à proteção da liberdade de consciência e crença. Todavia, enfatize-se que o Supremo Tribunal Federal decidiu, na ADIn no 1.480-DF, que os tratados e convenções “estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República” (SILVA NETO, 2008, p. 75)6.

Notoriamente, no Brasil, nem sempre a liberdade religiosa e a liberdade axiológico-filosófica, a despeito de serem definidas como garantias constitucionais fundamentais, efetivam-se significativamente nas práticas institucionais, considerando a participação e a grande influência do fenômeno religioso no processo político. Claramente se observa uma forte “resistência política à aprovação de leis que confrontem a moral católica”, ou, melhor dizendo, a moral cristã7, “tal como” “a descriminalização do aborto” e o “casamento de pessoas homossexuais” (DINIZ, 2010, p. 22). Na medida em que essa resistência bloqueia o reconhecimento da igualdade religiosa oua proteção do agnosticismo e do ateísmo (apoiados na liberdade de consciência), o Estado teria que encontrar mecanismos para o estabelecimento de limites à interferência de grupos religiosos nas decisões políticas, especialmente no processo de elaboração legislativa, por meio do controle de constitucionalidade de leis proselitistas. Esse controle seria legítimo em razão do caráter negativo dos direitos fundamentais, o que impõe limitações (contenções) na atuação do Poder Público, em todas as suas esferas. Nesse aspecto, Débora Diniz (2010, p. 50) destaca a “baixa eficácia do controle de constitucionalidade das leis estaduais” no Brasil, o que dificulta em muito o respeito à pluriconfessionalidade.

6. Liberdade religiosa e pluralismo político

O sentido conceitual das liberdades institucionais de pensamento, de consciência e de crença remete diretamente à garantia do direito à liberdade e à igualdade (CF, art. 5o caput) na esfera pública, o que exige a releitura do amplo significado da perspectiva da justiça social com enfoque em parâmetros de controle democrático em um nível suficiente à redistribuição da participação no processo decisório. A teoria liberal de Rawls, uma importante referência nas questões relativas às liberdades individuais, busca propiciar a coexistência de uma variedade de doutrinas abrangentes razoáveis que se articulem no exercício da razão pública. Dentro desses parâmetros, cada indivíduo é livre para professar suas próprias crenças religiosas ou filosóficas, cuja justificação se alcança “com base em um equilíbrio razoável de valores políticos públicos” (RAWLS, 2011, p. 287-288). Igualmente, M. Rosenfeld é outro autor que, em sua teoria a respeito do “sujeito constitucional”, discute a necessidade de se combater a intolerância religiosa, em sua pretensão de monopolizar a verdade, e desenvolve a ideia de interação entre a identidade constitucional e as identidades culturais e religiosas construídas em uma determinada sociedade. Nesse movimento dialético, a incorporação, no plano jurídico, das concepções religiosas a respeito do bem somente se legitima na medida em que não haja a prevalência de uma única, entre elas, em detrimento das demais, ou em detrimento das concepções não religiosas (ROSENFELD, 2010, p. 37). O paradigma do reconhecimento do direito à igualdade reside na consideração contextualizada das diferenças.

O conceito de pluralismo evoca a proposição de um sistema político aberto à participação “dos vários grupos ou camadas sociais” na composição “da vontade coletiva”, ou seja, um modelo de sociedade na qual “o indivíduo tem a máxima possibilidade de participar na formação das deliberações que lhe dizem respeito” (BOBBIO, 1999, p. 16, 22). O pluralismo insere-se no contexto das liberdades fundamentais, sobretudo as que estão em análise neste ensaio, no que diz respeito à defesa e garantia da multiplicidade psíquica, ideológica, ética e religiosa.

O reconhecimento do pluralismo, no Brasil, encontra empecilhos na vida social em decorrência da tensão existente entre a diversidade cultural e o fenômeno religioso. A “homogeneização” do pensamento religioso coloca em risco a liberdade de consciência, como um conceito que abrange as opções religiosas, agnósticas e ateístas. Assim, mesmo o propósito de um “ecumenismo religioso” não pode ser “fomentado pelo Estado”, na medida em que se afirma “o fato do pluralismo como elemento insuperável da sociedade contemporânea e democrática” (SORIANO, 2009, p. 173-174).

A Constituição, no artigo 215, caput e parágrafo 1o, proclama o direito ao “pleno exercício dos direitos culturais” e a livre manifestação “das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras” e de “outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Assim, no que pese o predomínio numérico de católicos e protestantes no Brasil, a identidade nacional é ampla o suficiente para justificar a proteção das manifestações culturais e religiosas não cristãs, autorizando ao Estado a prática de condutas positivas e intervencionistas em situações fáticas nas quais se evidencie que a liberdade de expressão de pensamento ou de crença está sendo obstada.

O banimento do preconceito e da discriminação das minorias é uma questão multidisciplinar, tendo que ser enfrentada nas esferas jurídica, social, política e econômica. Nesse particular, basta lembrar que a Constituição de 1988 definiu a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível (art. 5o, XLII) e, no artigo 231, reconheceu “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Cite-se, ainda, o art. 26-A da Lei 9.394/96, que tornou obrigatório “o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” (SZKLAROWSKY, 2009, p. 334) nas escolas públicas e particulares (ensino fundamental e médio). No Brasil, ainda existe uma segregação negra velada, assim como de outras etnias (judeu, índio etc.), o que reproduz um sério quadro de intolerância e perseguição, impedindo a incorporação dos valores culturais e práticas sociorreligiosas desses grupos no espaço público8.

Denota-se uma tendência à hegemonia de uma visão uniforme na escala valorativo- existencial, com o não reconhecimento efetivo das concepções particulares do pensamento e da conduta humana, em todas as suas dimensões. As disposições protetivas do “Estado constitucional” esbarram na realidade empírica da intolerância, que não é vencida até mesmo devido às desigualdades sociais e econômicas, impeditivas

da organização daqueles grupos historicamente desfavorecidos. Ademais, enfrenta-se atualmente o “desafio do fundamentalismo”, “fenômeno cultural” que, principalmente em sua vertente religiosa, desconstrói as bases do “estado democrático de direito, haja vista seu potencial de infiltração em “partidos e associações”. Movimentos fundamentalistas podem desenvolver-se em “qualquer religião”, sendo mais comuns “nas três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo” (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 47, 48, 52)9. Há de ser respeitada a autonomia moral e metafísica dos cidadãos, que podem livremente aderir a qualquer crença, inclusive as de caráter fundamentalista, mas não se pode admitir que a adesão a uma confissão religiosa possa importar em riscos à integridade física e moral das demais pessoas.

7. Conclusão

O ressurgimento da experiência religiosa ocorrido nas últimas décadas produziu novos desafios para o Direito. A Constituição de 1988 abriu o caminho para a minimização da intolerância e do fundamentalismo com a inclusão sociopolítica dos valores e confissões religiosas minoritárias. A necessidade de acomodação do fenômeno religioso modificou o processo de secularização, que não mais está radicalmente focado na rígida separação entre o Estado e a religião (neutralidade), mas, sim, na construção efetiva do paradigma da pluriconfessionalidade.

Nessa dimensão, a dogmática dos direitos fundamentais e a perspectiva de sua concretização cumpre uma função primordial no sentido de transformar em um direito fundamental o que se moldava antes no conceito de tolerância. Ao Estado se impõe o dever de garantir, inclusive por meio de medidas intervencionistas, o respeito às convicções e crenças individuais contra qualquer tipo de sectarismo e proselitismo militante.

Consideráveis são as críticas em relação à timidez do Estado no cumprimento desse papel garantidor, haja vista a tendência, que precisa ser interrompida, à institucionalização das crenças religiosas. A ação do poder judiciário ainda não desenvolveu mecanismos adequados ao controle da participação das entidades religiosas, por meio de seus representantes, no processo político, o que tem que se compatibilizar com os preceitos constitucionais. Em suma, é cristalino que somente os primeiros passos foram dados em direção ao acolhimento jurídico do pluralismo na dimensão das convicções e crenças pessoais.

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1 Canotilho (1998, p. 372) também faz referência à “concepção de um direito geral de personalidade”, afirmando que “cada vez mais os direitos fundamentais tendem a ser direitos de personalidade e vice versa”.

2 A dogmática jurídica sugere, em alguns casos, a analogia com o estado de necessidade, quando “se sacrifica bem jurídico de valor menor”, em outros casos a analogia com a “exclusão da culpabilidade” e, em outros ainda, “a cláusula de consciência” é considerada uma “espécie de inexigibilidade de conduta diversa” (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 316).

3 Veja-se, nesse sentido, a argumentação de F. Müller (apud BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 33-35) relacionada à incorporação dos aspectos empíricos no programa normativo, aspectos que se modificam ao longo do tempo, fazendo com que o legislador tenha que assumir uma “posição intermediária”, mantendo-se vinculado à norma objetiva e ao mesmo tempo às mudanças introduzidas pelas “circunstâncias” fáticas do caso concreto.

4 “Alguns autores, como G. Jellinek, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1998, p. 359).

5 Consulte-se, nesse particular, a crítica feita por BOBBIO (1999, p. 194) à atuação legislativa, no sentido de os partidos estarem “se transformando em facções”.

6 Sobre os tratados, convenções e declarações de direitos, ver também Silva Neto (2008, p. 79-84).

7 Aliás, o proselitismo religioso vem aumentando gravemente em razão do crescimento de outras religiões cristãs, sobretudo o protestantismo com suas diversas vertentes, que chegam mais e mais ao Brasil com o objetivo missionário de converter pessoas para sua doutrina. Sobre esse ponto, ver também Weingartner Neto (2007, p. 120-121).

8 A atualidade desse quadro social está minuciosamente explicitada no histórico julgamento do caso Ellwanger por parte do Supremo Tribunal Federal (HC no 82.424/RS), concernente à discriminação contra o povo judeu.

Referências

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Revista de Informação Legislativa - julho/setembro de 2012

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