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Luciano Coelho Ávila 
Promotor de Justiça do MPDFT

 

Na primeira parte do presente ensaio demos início a uma análise crítica e reflexiva sobre a questionável opção política do governo do Distrito Federal (GDF) por construir um estádio de futebol de padrão internacional com recursos integralmente públicos e capacidade para 71 mil espectadores, destinado a abrigar alguns poucos jogos da Copa do Mundo de 2014, em uma capital que não possui nenhuma tradição ou projeção no cenário do futebol nacional e em cujo campeonato local o público presente à grande final de 2012 foi de somente 970 torcedores.

O exame mais detido sobre a (falta de) “qualidade“ dos gastos públicos no DF ao longo dos últimos anos tem o condão de possibilitar reflexões mais críticas sobre até que ponto ou medida o administrador de interesses públicos, legitimamente eleito através da pia batismal do voto popular, pode valer-se do escudo pretensamente impenetrável do mandato que lhe foi conferido para definir, unilateral e discricionariamente, as políticas públicas governamentais. Em última análise, almeja-se averiguar a validade e a legitimidade social das escolhas governamentais não precedidas de ampla consulta ou participação popular para a ordenação de grandes despesas em setores manifestamente não prioritários para o bem estar de uma coletividade, tendo por parâmetro maior o fundamento constitucional republicano que impõe ao Poder Público e a todos os cidadãos brasileiros o primado do respeito à dignidade da pessoa humana, seja na sua dimensão individual, seja na coletiva.

Na primeira parte do texto, confrontamos a decisão política do GDF de construir um estádio para a Copa em Brasília com a grave situação da saúde e da segurança pública no DF, apontando alguns dos piores indicadores sociais do país nas regiões administrativas que integram esta unidade federada (o DF não pode ser dividido em municípios, sendo, por isso mesmo, composto por RA’s). 

Na sequência, ingressaremos no exame da política administrativa de educação pública do DF e na comparação entre os altos custos de construção do Estádio Nacional de Brasília e os dos demais Estádios da Copa de 2014, para possibilitar, ao final, a formulação de questionamentos reflexivos sobre a qualidade dos gastos públicos no Brasil.

Com efeito, no plano da educação pública infantil, constata-se no DF a inexistência de qualquer proposta ou política pedagógica efetivamente preocupadas com a “qualidade“ dos serviços educacionais oferecidos às crianças e adolescentes de famílias não abastadas. Tem havido preocupação exclusiva com a “quantidade“ de professores temporários e efetivos contratados no DF, nenhuma com a “formação“ desses profissionais e chega a beirar a utopia qualquer pretensão de se exigir uma fiscalização mais rígida sobre as estratégias de ensino empregadas em sala de aula pelos docentes, o que permitiria melhor aferir o grau de eficiência das técnicas pedagógicas que vêm sendo adotadas para a formação de nossos futuros cidadãos.

A política pública de ensino do DF (observação válida para quase todos os estados do Brasil) insiste em adotar métodos educacionais obsoletos e já ultrapassados no plano internacional, até porque a busca pelo conhecimento, segundo os maiores pedagogos da atualidade, deveria partir do interesse das crianças e adolescentes pelos assuntos em geral e não pelo que é imposto, quase que autoritariamente, pelos supostos “detentores do saber“, método que apenas se presta a retirar o interesse dos infantes pelo aprendizado (Fernando Hernández e Paulo Freire). Faltam professores qualificados e capazes de estimular o senso crítico das crianças. Faltam investimentos para a melhor estruturação das escolas, mas não só investimentos: falta, sobretudo, competência de gestão. 

E apesar de todos esses indicadores sociais escandalosamente desfavoráveis que contribuem para fazer do Brasil um país em eterno desenvolvimento — fora do eixo dos países ditos desenvolvidos e de bem estar social já alcançado —, quando imaginamos que o surreal encontra limites, acabamos por nos surpreender a cada dia com a notável capacidade dos gestores do dinheiro público na inversão do que deveria constituir prioridade nesse país de imensos abismos e contrastes sociais e culturais.

De fato, em meio às inaceitáveis contradições que resultam do cotejo analítico entre as altas receitas financeiras do DF — proporcionalmente as maiores do país dentre as unidades federadas — e a péssima qualidade ou ineficiência de seus serviços públicos essenciais, por outro, acaba de chegar ao fim a construção do imponente Estádio Nacional de Brasília, cujo valor final das obras[1] se aproximará, estratosfericamente, da casa de 1 bilhão e 500 milhões de reais[2] — o Estádio mais caro do mundo de todos os tempos[3] —, custeado exclusivamente com recursos públicos provenientes de convênio celebrado entre Novacap e Terracap, por meio do qual a última se comprometeu a alienar terras públicas pertencentes ao DF para emprego de seu produto na conclusão do moderno “Coliseu Romano“ da capital federal — uma refêrência às belas e grandiosas colunas externas de sustentação da obra faraônica, no melhor estilo da arena dos gladiadores históricos.

Segundo dados recentemente divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo, relatório técnico de auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) nas contas das obras no Estádio de Brasília já aponta, preliminarmente, um desvio de dinheiro público da ordem de pelo menos R$ 212,3 milhões. O TCDF já cobra a devolução de R$ 99,9 millhões do consórcio formado por Andrade Gutierrez e Via Engenharia e exigiu do GDF a explicação de R$ 112,4 milhões aparentemente desviados.[4] A auditoria em questão também assinala que o preço do assento do Estádio de Brasília, orçado em R$ 16.938, por exemplo, é mais de duas vezes superior ao mais barato, que é o do Estádio Castelão de Fortaleza, de R$ 7.740. Na comparação com o palco da abertura da Copa de 2014, a Arena Corinthians/Itaquerão, que tem o segundo maior custo de colocação de assentos, o preço dos assentos é R$ 12.615, 40% menor que o do Estádio de Brasília.

Extrai-se, ainda, de mencionado relatório técnico, que superfaturamento, cobrança de serviços em duplicidade, erros de quantitativos, mudança de itens do projeto original e barbeiragens gerenciais contribuíram para o Estádio Nacional se tornar o mais caro de todos os tempos.

Enquanto isso, na capital do Rio Grande do Sul, Estado de grande tradição e prestígio futebolístico, foi recentemente inaugurada a belíssima Arena Grêmio, com capacidade para 60 mil torcedores, obra construída pela iniciativa privada, com parte de seu valor financiada pelo BNDES. O custo final da nova arena, igualmente erguida em padrão internacional, girou em torno de R$ 500 milhões, segundo informações oficiais extraídas do site do clube portoalegrense[5].

Apenas para que nossa avaliação não se limite ao custo de construção dos estádios de Brasília e de Porto Alegre, esclareça-se, para fins comparativos, que o custo final da Arena Castelão, em Fortaleza, para 64 mil lugares, foi de R$ 518 milhões; a Arena Pernambuco, em Recife, com capacidade para 46 mil espectadores, tem custo estimado de R$ 530 milhões; o novo Mineirão, em Belo Horizonte, custou R$ 666 milhões, para um público máximo de 62 mil pessoas; o Estádio Itaquerão/SP, custará em torno de R$ 800 milhões; a nova arena Fonte Nova, em Salvador, custou R$ 591 milhões; todos com custos significativamente inferiores aos de Brasília, com a agravante de que nas outras capitais mencionadas existem grandes times de tradição no cenário do futebol nacional, com clássicos vibrantes e público lotando os estádios, diferentemente do que se dá na capital da política.

Diante de tamanhas disparidades de valores, indicativas da flagrante falta de zelo, bom senso, economicidade, eficiência e qualidade dos gastos públicos para a construção, na capital federal, do estádio mais caro do futebol mundial de todos os tempos — com custos superiores aos das mais modernas arenas alemãs — e erguido com a finalidade precípua (para não dizer única) de abrigar apenas alguns jogos da Copa do Mundo de 2014, impõe-se-nos, como cidadãos e contribuintes preocupados com os destinos dos recursos públicos, suscitar alguns questionamentos para aspectos não veiculados nas propagandas televisivas de bebidas que buscam apenas celebrar, mediante lavagem cerebral dos telespectadores alienados, tão grandioso evento no Brasil. Afinal, como defenderiam importantes filósofos, muitas vezes mais importantes que respostas são as boas perguntas, capazes de nos conduzir às melhores e mais aprofundadas reflexões. Indaguemos, pois!

Em primeiro lugar, como se explica, objetivamente, o fato de o Estádio Nacional de Brasília ter custado próximo de R$ 1,5 bilhão pagos integralmente com recursos públicos? Por que o Estádio de Brasília, seguindo o modelo de economicidade, planejamento e eficiência portoalegrense, não foi construído pela iniciativa privada? Por que o Estádio de Brasília não custou “apenas“ R$ 500 milhões, a exemplo da belíssima Arena Grêmio?

De outro vértice, quais as razões de interesse social que levaram o GDF a não optar por investir R$ 1 bilhão em setores manifestamente prioritários para o bem estar de sua população, como segurança pública preventiva, saúde, transporte coletivo e educação de qualidade (temas que mais afligem a população do DF), sobrando-lhe, ainda, em torno de R$ 500 milhões para a construção de um estádio de padrão internacional com capacidade para abrigar 60 mil pessoas em perfeitas condições durante a Copa do Mundo? Há base constitucional para tamanha discricionaridade administrativa?

Sob os influxos do princípio da democracia participativa, amplamente albergado pelo Texto Constitucional de 88 (artigo 14, incisos I e II; artigo 49, inciso XV, e artigo 61, parágrafo 2º — CR/88), como se justificar o fato de a população do DF não ter sido ouvida através de prévia consulta popular, audiências públicas ou até mesmo sob a forma de referendo sobre a melhor destinação desses vultosos recursos empregados na construção do Estádio? Qual importância tem sido dada ao desenvolvimento do princípio da democracia participativa entre nós?

Ainda em termos jurídico-constitucionais: afora o controle social exercido a cada 4 anos através do voto popular, não há qualquer outro mecanismo legal ou constitucional de controle jurisdicional das escolhas manifestamente incoerentes do administrador e do legislador[6]? Será que não há outras prioridades a serem atendidas pelo DF diante da clara ineficiência e má qualidade dos serviços públicos essenciais que disponibiliza aos seus cidadãos, mesmo sendo ele detentor de privilégios financeiros não ostentados pelos demais estados da federação brasileira? Por que o Poder Judiciário brasileiro ainda tem sido tão refratário à admissibilidade desse tipo de controle jurisdicional incidente sobre a própria constitucionalidade do denominado “mérito administrativo“, mesmo quando a alegação de reserva de discricionariedade administrativa presta-se apenas a obnublar a prática de desvios flagrantes de finalidade ou abusos de poder?

Já avançando para os possíveis aspectos relacionados à eventual configuração de ato de improbidade administrativa, o custo final de quase R$1,5 bilhão do Estádio de Brasília, três vezes mais caro que outras belíssimas arenas nacionais, representa, ou não, intolerável desperdício de dinheiro público dolosamente atentatório aos princípios da moralidade e economicidade administrativas?

Em termos de ganhos palpáveis para a sociedade, qual será o legado do Estádio Nacional de Brasília para uma capital que não possui nenhum time de futebol de expressividade no cenário nacional? Qual será o legado da Copa de 2014 para a saúde, a educação e a segurança da população do DF? O Estádio Nacional de Brasília será apenas "mais uma obra de arte no museu a céu aberto que é Brasília“, como já o definiram alguns políticos defensores dos altos gastos utilizados para sua construção?

Na França, não há muito tempo, milhares e milhares de "cidadãos" inconformados com a decisão do governo francês de retirar um simples comprimido de aspirina das cestas básicas fornecidas gratuitamente à população carente resolveram tomar as ruas em sinal de protesto. Os manifestantes, ordeira, mas vigorosamente, exigiam a retratação governamental, num admirável exemplo de mobilização, cidadania e capacidade de reação popular. Também pudera: ali está o berço da revolução iluminista que, em 1789, logrou derrubar a monarquia despótica e impor limites ao arbítrio estatal, através da consagração de diversas liberdades públicas, sob a forma de direitos individuais oponíveis contra o Estado. Os cidadãos franceses, historicamente, possuem plena consciência cívica de seu direito — e mais que isso, de seu dever — de interferir nas decisões políticas governamentais capazes de afetar negativamente o seu dia a dia. Não se contentam em simplesmente entregar um mandato popular a um governante eleito para julgá-lo apenas ao final de sua gestão, através do voto. Cobram-no diuturnamente pelos mais variados e legítimos meios. No caso exemplificado, tratava-se de uma simples aspirina a menos na cesta básica mensal. Não é preciso muito esforço intelectual para se imaginar o que ocorreria por lá se a situação envolvesse tamanho desperdício de dinheiro público em obra absolutamente desnecessária para o verdadeiro bem estar do povo.

E o que temos feito nós, subservientes cidadãos brasileiros, diante dos desvios cotidianos dos recursos públicos que poderiam e deveriam ser aplicados para a melhoria de nossa saúde pública e assistência social? Como temos reagido à falaciosa segurança pública que não nos protege? E o que dizer de nossa educação pública obsoleta e de péssima qualidade e do enlameado transporte público coletivo que não nos serve com a sonhada eficiência ? Pacatos cidadãos de Roma: até quando nos contentaremos com pão e circo no majestoso “Coliseu Romano“ erguido em pleno século XXI na capital do Brasil? Aliás, tem havido pão para todos?

[1] Considerando o custo total das obras do Estádio e das denominadas estruturas temporárias (ou provisórias) que serão construídas ao redor do Estádio por exigência da FIFA.

[2] A previsão inicial de custo do Estádio era de R$ 696 milhões de reais, segundo dados fornecidos pelo TCDF.

[3] Fonte: https://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/estadio-de-brasilia-para-a-copa-de-2014-estoura-todos-os-orcamentos-e-se-torna-o-mais-caro-do-mundo/

[4]Fonte: Jornal Estado de S. Paulo, edição de 27/01/2013.

[5] https://www.arena.gremio.net

[6]Vide, em defesa desse ponto de vista, a tese defendida por Robert Alexy, in Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 422.

Consultor Jurídico - 29/5/2013

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