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Fausto Rodrigues de Lima
Promotor de Justiça do MPDFT

Todos os juízes e promotores do país devem enfrentar a violência doméstica “sem interpretações sexistas e discriminatórias, observando que as mulheres devem ser protegidas em qualquer relação íntima de afeto, como determina o art. 5º, III, da Lei Maria da Penha, sem perquirir a duração da relação, se há fidelidade ou qualquer outra interpretação moral tendente a retirar a proteção de supostas “amantes”, “ficantes” etc.”.

Ao fazer essa recomendação, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência Doméstica contra a Mulher denunciou a fiscalização judiciária do comportamento sexual da mulher e conclamou o sistema de Justiça a deter as criativas interpretações que deturpam a lei. Redigido pela senadora Ana Rita (PT-ES), o relatório foi aprovado por unanimidade no Senado na última quinta-feira.

É fato que, após a edição da Lei Maria da Penha, surgiram decisões negando sua aplicação a mulheres que não se submetem à aprovação social do casamento ou a relações “estáveis”. Muitos julgados recusaram amparar namoradas ou as que viviam “intimidades” de pouco tempo ou às escondidas. Somente depois do assassinato da adolescente Eloá, pelo ex-namorado, em 2008, o Superior Tribunal de Justiça reviu decisões e passou a aceitar a proteção das namoradas.

Porém, a CPMI detectou que continuaram as interpretações “imbuídas da mais profunda e perversa ideologia patriarcal”. Ao analisar o caso Eliza Samúdio, averiguou-se que a moça pediu ajuda ao Estado, registrando ocorrência no Rio de Janeiro, após ter sido sequestrada, espancada, ameaçada com arma e obrigada a beber um líquido abortivo. A Justiça, porém, decidiu que o jogador Bruno poderia continuar a se aproximar dela impunemente, sustentando que a lei só serviria para proteger a “família, seja ela proveniente de união estável ou do casamento, e a mulher na relação afetiva”. Arrematou-se que Eliza tinha “comportamento desajustado” porque “procurava envolvimento com muitos jogadores de futebol”. “Nesse ponto, não se define bem quem é vítima de quem”, persistiram os julgados.

Desprezada pela Justiça, Eliza ficou escondida em outro estado até a criança nascer. Enquanto isso, Bruno incentivava a violência na mídia, pois, ao defender o colega Adriano, também acusado de agredir a noiva, profetizou que todo homem já tinha “saído na mão com a mulher” e que “não tem jeito, em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

Sentindo-se vítima de uma mulher considerada “desajustada” pela própria Justiça, Bruno ficou à vontade para tramar o bárbaro assassinato, com a certeza da impunidade. “Ora, se mulheres como Eliza não têm direito sequer a uma medida protetiva, quem se importaria com seu desaparecimento?”, instigou a CPMI. Ela acabou sendo morta, sem remorsos, “por um bando que teve o apoio estatal para desprezá-la como pessoa, como mulher, por causa de suas escolhas pessoais”. O corpo foi jogado para cães rottweiler.

Coincidentemente, no dia em que a CPMI aprovava o relatório, o tribunal carioca anulava a condenação do ator Dado Dolabella por entender que a lesão corporal causada em sua então namorada, Luana Piovani, não é albergada pela Lei Maria da Penha. Decidiu-se que Luana, “além de não conviver em relação de afetividade estável”, não seria “hipossuficiente” ou “vulnerável”, pois “é público e notório que nunca foi uma mulher oprimida ou subjugada aos caprichos do homem”. Parece óbvio, na verdade, que o tribunal reiterou uma censura velada à atriz, talvez por sua independência noticiada na imprensa. O tribunal parece desconhecer que a violência doméstica não escolhe classe social ou raça. Tome-se, por exemplo, a juíza assassinada pelo ex-marido no Fórum de Alto Taquari (Mato Grosso), em 7 de junho deste ano.

A prevalecer o novo entendimento da Corte carioca, somente os homens residentes em favela serão punidos. Os maridos e namorados que ocupam posição social privilegiada, cujas mulheres são presumivelmente autossuficientes, ficarão de fora desse sistema repressivo. É a discriminação de gênero, de classe social e de raça num mesmo pacote, contribuindo para que a seletividade do direito penal beneficie um grupo que se considera socialmente “evoluído”.

Porém, em matéria de preconceitos, não há evolução de classes. Todos reproduzimos uma cultura aprendida desde a infância, que coloca homens e mulheres em seu devido lugar, incentivando comportamentos estereotipados: a uns, a agressividade viril e uma pitada de promiscuidade; a outras, a complacência e o recato. Neste momento em que a população exige mais dos órgãos públicos, o relatório de 1.044 páginas da CPMI merece reflexão.

Correio Braziliense - 10/7/2013

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