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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Não existe nada mais fácil e ao mesmo tempo mais difícil do que a tal “atitude suspeita”. Uma categoria profissional que a conhece como ninguém é a dos policiais que fazem trabalho de rua, principalmente os integrantes da Polícia Militar, mas também os agentes da Polícia Civil.

Estudiosos dos direitos penal e processual penal compreendem o tema em seu fascínio doutrinário, no conforto das poltronas onde as histórias chegam moldadas, idealizadas. Policiais de rua vivenciam os perigos reais. Com a experiência, assumem uma postura altamente desconfiada, desenvolvem o faro, enxergam situações que olhares destreinados não percebem.

Vejam aquilo que o jargão chama de “dar mole”. “Dar mole” traduz o sujeito que está na calçada, debaixo de uma marquise, ao lado de um ponto de ônibus — mas não esperando ônibus nenhum. Está lá, parado, fazendo nada, ou
conversando com um ou outro, sem objetivo. A viatura passa de novo, 10 ou 20 minutos depois, e o sujeito se encontra no mesmo lugar. A polícia vai abordá-lo, porque “alguma coisa” — que ainda não se sabe bem o quê —- ele está fazendo. Surge a suspeita de uma situação ilícita, simplesmente porque pessoas sem nenhuma intenção ilegal não agem assim. Isso é tão óbvio, que é até difícil de explicar.


Mas os policiais têm autoridade para proceder a tal abordagem? Na busca pela resposta certa, é preciso lembrar que é típico dos regimes democráticos, dos quais participa o ordenamento brasileiro, o direito de ir e vir. A liberdade de locomoção não seria plena se as pessoas precisassem de autorização, prévia ou intercorrente, da autoridade pública competente. Qualquer um pode sair de casa e atravessar a cidade, ao bel-prazer, sem pedir permissão ou sem dar satisfações a quem quer que seja.

Mas democracia também pede ordem e segurança. A hipótese, aqui, não é bem do direito de “ir” nem de “vir”, mas de “ficar”. Pode-se ficar sentado em um banco de praça porque a praça foi feita para o lazer, e o banco foi colocado para ser usado, ou seja, para se sentar nele. Portanto, não há nada mais natural que alguém permaneça no banco da praça, entregue ao “quod plerumqueaccidit”: lendo jornal, comendo um sanduíche, conversando, ou apenas sozinho e tranquilo. Não existe um tempo definido que o permita ficar ali. Mas o quadro muda  se começar a transparecer que está morando no banco, porque este foi feito para sentar, não para dormir.

Calçada de rua é diferente. Ela não foi construída para ficar, mas para passar. Uma parada breve, para cumprimentar um conhecido ou mandar uma mensagem pelo celular, é perfeitamente aceitável (dependendo de sua localização e da movimentação de pessoas). Mas o “dar mole” não é nada disso, e sim a utilização do espaço público de modo desvirtuado, para algum escopo ilegal qualquer. É esse “qualquer” o que os policiais vão verificar.

Pode ser que o sujeito até não esteja “dando mole”, mas se “circuitar” (o que antigamente se chamava “dar bandeira”), a polícia também procede a abordagem. É o que ocorre quando ele demonstra nervosismo, entra numa loja para disfarçar, apressa o passo e fica olhando de soslaio, e outras condutas que muitas vezes o policial não consegue explicar direito, porque foram apreendidas mais pelo instinto ou pela intuição do que por uma elaboração intelectual.

A questão passa a ser a abordagem em si. Existe um certo padrão, mas não uma técnica única. Tudo vai depender do contexto (número de envolvidos, local exato, horário etc.), e também da maneira de atuar do policial, o que inclui até seu temperamento. A abordagem consistirá em entrevista, que poderá evoluir para busca pessoal (“revista”) e prisão em flagrante. Esta última constrange de vez a liberdade individual, e só pode —- e só deve — ser manejada se o policial avaliar que a situação é criminosa, e não apenas estranha. Se não passar de uma suspeita, o sujeito tem que ser liberado.

Se a pessoa resistir, é juridicamente possível que os policiais usem de força física suficiente para dominá-la. Podem chegar a disparar arma de fogo? Em casos extremos, sim. O que não é aceitável jamais é a força física estúpida, gratuita, caprichosa, desnecessária ou desproporcional. O policial não pode perder o controle, emocional e operacional, da situação.

É claro que, na avaliação da atitude suspeita, entram em cena elementos de preconceito — aliás, a atitude suspeita é um preconceito a ser checado, para se certificar se se trata de um conceito ou um conceito falso —, que podem ser odiosos. Por exemplo, sujeito muito conhecido da polícia, que já foi preso diversas vezes e é avistado na rua, será abordado; ele está em eterna atitude suspeita meramente por ser quem é. Uma vez bandido…

Correio Braziliense - 2/9/2013

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