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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

Em Ensaio sobre a lucidez, José Saramago imaginou uma eleição popular em que algo de inusitado aconteceu. Abertas as urnas, apurou-se que mais de 75% dos votos estavam em branco. As reações foram fortes: “desconcerto”, “estupefação”, “troça”, “sarcasmo”. Como de praxe, não faltou aquele “reputadíssimo especialista nestas matérias” a classificar o fenômeno de “teratologia políticosocial”. O governo lamentou o ocorrido e convocou novas eleições, confiando que o povo, desta vez, iria “exercer o seu dever cívico com a dignidade e o decoro com que sempre o fez no passado”.

Mas o segundo escrutínio foi ainda pior: os votos em branco superaram os 83%. Como resposta, os governantes resolveram se retirar da capital, abandonando-a na expectativa de que se instalasse o caos e que as pessoas se arrependessem de tamanho erro.

A maneira como se trata a política, se na base da ridícula seriedade ou do seriamente ridículo, depende da qualificação e da quantificação do “nós” e do “eu”. Essa distinção não se contentará com manifestações pontuais, como, por exemplo, o voto no Tiririca, que, inobstante de deboche, não o impediu de ter tomado posse e estar em pleno exercício do mandato de deputado do estado mais proeminente do país. Exercer alguma parcela de poder, nesse caso, e da noite para o dia, fez abandonar a grulha mais rasteira para assumir ares de elevada compenetração. Vamos ver como esse passe de mágica será desfeito.

Compreender a política a partir doTiririca—ou dos protestos atuais nas ruas, ou qualquer outra expressão que apareça de uma forma ou de outra—equivale a compreender a engenharia deumprédio enormea partir do papel de parede colocado em seus corredores.Como todos os demais aspectos da vida pública, a política tem muitos andares, isto é, uma longa trajetória.Todo e qualquer analista se encontraemdeterminado patamar pelo simples e inevitável fato de ter nascido e de viver em sua própria época.O que é necessário fazer é sair da própria época; é descer os andares, até o chão, ou melhor, até as estruturas, para voltar a subir, aí, sim, com conhecimento de causa, com discernimento entre o que é importante, secundário ou irrelevante.

Tal trabalho implica a abstração de duas questões: (1) captação de pontos em comum da experiência política, na história e na geografia; e (2) simplificação radical das formas, até se chegar muito perto, ou mesmo face a face, de questões metafísicas, que não foram respondidas previamente, mas colocadas entre parênteses porque não se queria, não se sabia ou não se podia enfrentá-las. E agora não tem jeito: o que havia sido expulso pela porta insiste em voltar pela janela.

Em filosofia científica, chama-se “modelo” a construção em miniatura, física ou mental, de algo que se acredita que seja a realidade, esta de impossível manipulação dela mesma, porque grande, distante ou antiga demais. O modelo não é o sucedâneo da realidade “sub specie aeternitatis”, mas a possibilidade de seu entendimento. A pessoa que se lança a essa empresa precisa estar bem equipada em suas bagagens epistemológica e moral, por se deixar inspirar por esforço que é necessário e está no caminho certo, mas com humildade suficiente para proceder às correções cabíveis. E, se for o caso, admitir que passou os últimos anos, senão a vida toda, dedicado a uma causa errada em que chegou a acreditar piamente. É claro que não é fácil chegar a essa confissão. Dói.

Creio que o “modelo” da vida comum diga respeito a uma questão de destacamento, de limites de sua espontaneidade. Como o pêndulo nós-eu não se movimenta dentro de uma configuração abstrata bem acabada — e, principalmente, de uma vivência política que sabe sua exata função dentro do tecido social —, o que se faz é a sub-rogação do oficial pelo difuso, ou ainda, por um falso difuso: passar do “eu” para o “nós” costuma estancar em um“falso nós”, e do “nós” para o “todos nós” implica passar por um“tu” e por um“vós”. É num estalar de dedos que a sorna de um vagabundo qualquer se
transforma no mais estúpido terrorismo. Depois, ficamos indignados, sem saber o que fazer.

O governo da obra de Saramago (logo quem) encontra culpados para a revolta dos votos brancos — dando, assim, continuidade a Ensaio sobre a cegueira, ainda quemovido por uma tese acusatória totalmente estapafúrdia. Não importa. O absurdo acontece o tempo todo. Não interessa se os culpados eram culpados, e, sim, que o fossem. A imputação vale por si, a estigmatização funciona mais do que o processo e, porca miséria, muito mais do que a pena. Enquanto houver força física suficiente, amigos do rei e intelectuais de araque dispostos a bancar a farsa, os “nós” não passamos de tiriricas às avessas, de palhaços involuntários.

Correio Braziliense - 23/9/2013

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