Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Belo dia, playboy bonzinho e inofensivo sai de seu espetacular apartamento, na ilha de Manhattan, Nova Iorque. Oba, pensa, a rua está vazia, e começa a dirigir sua Ferrari 250 GTO com a maior tranquilidade. O que era bom começa a ficar bom demais, mas depois começa a ficar ruim demais: não havia absolutamente ninguém em canto nenhum. Desesperado, ele desce do carro e começa a correr, com a sensação angustiante de que o mundo havia acabado, e só ele a ele sobrevivido.
Todos nós vivemos em meio a um grupo de pessoas. Ou melhor, a grupos de pessoas. O grupo pequeno são familiares e amigos. O grupo médio são colegas e conhecidos. O grupo grande são desconhecidos, com os quais posso vir a ter contato (no meu bairro, em Fortaleza) ou nunca nem ouvir falar (em Moncton, em Dar Es Salam).
O problema do personagem de Tom Cruise em “Vanila Sky” é que ele é solipsista, e o filme é justamente sobre a transição em que coisas maravilhosas se tornam um pesadelo. No seu mundo particular, o playboy escolhe viver de maneira objetivamente feliz (sem se preocupar com dinheiro, saúde, problemas em geral) e se cerca daquilo que todo homem precisa para se realizar no plano pessoal: um grande amigo e um grande amor. Por via das dúvidas, ele desmembra o grande amor e guarda uma loira como uma espécie de reserva técnica. Ele gosta da morena, e a morena e a loira gostam dele.
Bentinho, de Machado de Assis, também tinha um grande amigo, Escobar, e um grande amor, Capitu, que, todavia, unem-se e traem-no. Ele então se fecha, casmurro, pois não tem mais tempo nem disposição para recuperar a fé na humanidade, para abrir sua privacidade à permeação dos grupos maiores. Mas há quem ache que Bentinho também era solipsista, e que a traição era imaginária. Eu acho que falou uma loira em sua vida.
Jornal de Brasília - 14/10/2013