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Ivaldo Lemos Junior 
Promotor de Justiça do MPDFT

Não é de hoje que está fincada a bandeira que leva o nome Mario Vargas Llosa no território dos grandes escritores. E não do Peru ou da América Latina atuais, mas do mundo inteiro. Ou seja: Mario Vargas Llosa é um dos maiores escritores do mundo, de todos os tempos.

Seu último romance, O herói discreto, utiliza a mesma técnica que usou diversas outras vezes. Em um capítulo, conta uma história e, no capítulo seguinte, outra. A impressão inicial é de que as histórias são completamente diferentes entre si, mas, aos poucos, vão se emulsionando, até se misturarem ao final. Vargas Llosa é mestre absoluto no artesanato dessa trama.

Uma das histórias é a de Felícito Yanaqué, empresário do ramo de transportes, que recebe proposta que aparentava ser de “proteção” de um grupo criminoso. O que a “máfia” — como o vulgo se refere ao crime organizado — chama de “proteção” consiste em uma troca muito desigual: você faz o que eu quero, e eu não o prejudico. Você me paga ou me presta algum serviço (“favor”), e eu não o sequestro, não danifico seus bens, não mato alguém de sua família, ou você mesmo. Posso até lhe proteger, de verdade, sem aspas.

Joe Pistone foi um agente do FBI pioneiro no trabalho de infiltração no crime organizado, na Nova York da década de 1980. Ele passou seis anos disfarçado de bandido, em uma missão investigativa de total imersão, inédita até então, mas muito produtiva. Depois, escreveu bastante sobre essa experiência, de modo especial em Donnie Brasco, cognome de seu alter ego.

Pistone explica que mafiosos não são exatamente assassinos. Eles matam, sim, espancam, torturam, ameaçam, usam de toda a brutalidade que julgam conveniente. Mas tudo isso são atividades-meio. O objeto final é o patrimônio. Seus adeptos são, na essência, ladrões, latrocidas, e não homicidas.

Pessoas comuns e honestas não têm noção de algo assustador: o contato muito mais próximo com o crime organizado do que imaginam. Quem garante que o papel higiênico de um restaurante não seja produto de roubo? Talvez o dono do restaurante tenha tido oportunidade de comprar algo de maneira barata e sem riscos ou talvez nem seja de seu conhecimento, mas não é por ignorância que coisas roubadas deixam de sê-lo. O mesmo vale para pessoas físicas, lojas e até repartições públicas. Não sei se o exemplo é bom, mas anos atrás, o carro oficial do presidente do Paraguai havia sido furtado no Brasil.

Para o crime organizado, não existem pessoas totalmente avulsas. Ou buscarão as conexões cabíveis para poderem sobreviver ou serão eliminados se representarem um estorvo aos negócios do grupo, que se dividem em blocos geográficos e pautas de atuação. Ou, ainda, encaixar-se-ão em alguma camada onde a capilaridade do crime é ao mesmo tempo inofensiva e útil, como, por exemplo, o traficante de drogas que faz vendas miúdas em uma esquina da vida.

Vítimas tampouco estão de todo isoladas. Felícito Yanaqué não foi escolhido por acaso: seus colegas de profissão já vinham sendo extorquidos e pagavam pela “proteção” como despesas correntes dos caixas de suas empresas. Não deixou de ser uma surpresa que Felícito não se rendesse, e a resposta veio na forma de destruição de bens (real) e sequestro (falso). Não vou contar mais do que isso. Limito-me a afirmar que o livro — cujo final feliz foi de conteúdo quase normativo — tenha apontado para uma confusão muitas vezes sutil entre as posições de vítima e cúmplice de chantagem, bem como entre crime organizado e não organizado.

Se você parar para pensar, o direito é uma forma de violência. Você a ele se submete, de maneira mais ou menos voluntária, e se arrisca a ser punido em caso de rebeldia (aqui, a retaliação é chamada de “sanção”). Tanto o Estado quanto a máfia conseguem, com facilidade, reduzir o indivíduo à insignificância, à impotência. A diferença também não está na questão da “legitimidade”. Quase todas as formas de violências têm aspiração de “legitimidade”, que é a obediência de maneira mais profundamente sincera do que o medo puro e simples. Ou seja, o dever é urdido não como uma expressão do direito de se exigir acatamento, mas como uma consequência. Há poucas coisas mais ridículas do que o assaltante trapalhão que faz sua vítima cair na gargalhada.

Pois bem. Joe Pistone diz que um dos lugares mais protegidos da cidade são as proximidades da casa onde mora o chefe de uma quadrilha criminosa. Na oficialidade da lei, nada garante que as cercanias de um palácio real ou de um posto policial sejam locais lá muito seguros.

Correio Braziliense - 18/11/2013

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