Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
Tempos atrás, vi a Xuxa na TV contando que havia parado em uma lojinha de posto de gasolina para uma compra rápida, uma bobagem qualquer. Foi um pandemônio. Juntou gente de todos os lados, cercando-a para fotos, autógrafos etc.
Essas histórias costumam se repetir com pessoas demasiado conhecidas.Mas as unanimidades são raras, raríssimas; os famosos também têm seus detratores. Tom Jobim disse que nunca recebia tratamento normal. Ou era paparicado pelos que dele gostavam, ou acontecia o extremo oposto. Não ser reconhecido era a única coisa que não acontecia.
Isso é suficiente para uma constatação inicial: a Xuxa não tem intimidade. Melhor explicando, ela tem, claro, direito à intimidade, como qualquer ser humano. O problema é que não consegue mais exercer esse direito. Não duvido que ela não goste de ser assediada sempre. Imagino que lhe agradaria passear na rua sem ser importunada. Mas fazer coisas simples, no anonimato, sem a azáfama dos curiosos, não está sob seu controle, nem do de Pelé, Zico, Gisele, Ivete e tantos outros.
A ausência/diminuição de privacidade é, para alguns, um juízo de fato, não uma reflexão de conteúdo normativo, ou uma valoração sobre a qualidade de seus talentos ou suas personalidades. Não que a vida desses indivíduos pertença ao público; nada disso, é de cada um deles e de mais ninguém. Mas o exercício pleno do direito à privacidade e à liberdade de locomoção está comprometido de maneira indisfarçável. Não dá para colocar a pasta de volta no tubo. Assim como não dá para desfrutar das vantagens que a fama traz — que devem ser muitas e ótimas —, e deixar de pagar o preço correspondente. Tal parece impossível, não só no Brasil,mas em qualquer outro lugar. Aliás, celebridades nacionais até podem passear à vontade em outros países; estrelas mundiais nem isso. Intimidade, para os Beatles, o casal Brangelina ou até o Justin Bieber, é fugir, é se esconder, é chegar em suas mansões e fechar as cortinas.
Aceita essa premissa, vamos enfrentar outra: são as vidas extraordinárias as que atraem biografias, romances, argumentos cinematográficos, reportagens, entrevistas, verbetes, notinhas, fotos de paparazzi. Nesse ponto, concordam desde a seriedade da Britannica até a futilidade da Caras. A menina que trabalha no caixa da padaria não vai sair na capa da revista de fofocas nem será estudada para próxima pesquisa do Ruy Castro. O que desperta interesse de um público maior do que o mexerico da vizinhança são histórias fora do comum, ainda que um tanto estilizadas ou exageradas.
A questão da autorização prévia para tratar de alguém é também mais uma dificuldade de fato do que de direito. Ninguém gastaria anos de pesquisa e elaboração de material sem saber se o biografado terá poder de veto. Mesmo o articulista de jornal não tem como entrar em contato com a assessoria de imprensa do Roberto Carlos e pedir permissão para falar do — e muito menos com o — “Rei”, ainda que jure que suas intenções sejam da mais açucarada louvação. Tudo se perde de vez quando o assunto são os mortos. É como procurar uma agulha em um palheiro, localizar os herdeiros de Bach ou de Napoleão e convencê-los a autorizar a publicação de uma obra sobre eles.
Escrever sobre alguém consiste inevitavelmente em uma perda ontológica, pois o ser humano passa a ser um assunto, uma pauta. Isso mesmo: um objeto. Ou existe o direito de se escrever, em uma perspectiva em que o termo forte é uma decisão livre do autor — e subjetiva apenas em um sentido operacional —, ou certos assuntos estão de antemão vedados. São tabu. Se esse o caso de Caetano Veloso ou Chico Buarque, então eles estão acima da lei, flutuando em uma camada de ordenamento jurídico especialmente reservada. O princípio da igualdade de direitos e obrigações (Constituição, artigo 5º, I) não os submete pela força de seus desejos, ou de seus caprichos.
No fundo, o que o biografado não quer é não gostar do que for ler sobre si. Claro que isso pode ocorrer e gerar uma situação delicada, um desconforto, até um impasse. Afinal, qual história de vida passou ao largo de pontos fracos, amores frustrados, doenças, acidentes, fotos comprometedoras — ou banalidades irrelevantes? Mas, se não caíram no esquecimento, o biógrafo pode trazer quaisquer eventos à baila. É dele a opção por enfatizar esses ou aqueles aspectos da trajetória do biografado. O primeiro dos riscos que arrosta é o de escrever um livro de baixa categoria, desfocando as razões que urdiram — com justiça ou não — determinada pessoa como merecedora de uma obra sobre si. O segundo risco é o de faltar com a verdade, ou de dizer a verdade de maneira infeliz, que possa lhe render um processo civil ou mesmo criminal. Já o risco de apenas desagradar é do biografado, não do biógrafo.
Correio Braziliense - 9/12/2013