Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT
O falecido filósofo espanhol José Ortega y Gasset se apresentava como um intérprete radical da história. Ele exigia que a sociedade fosse aristocrática, e que o fosse sempre, queira ou não, “a ponto de ser sociedade na medida em que é aristocrática, e deixar de sê-lo na medida em que se desaristrocratiza”. O autor de “A rebelião das massas” fez, todavia, duas ressalvas.Aprimeira é a de que o sentido do termo “aristocrático” não se confunde com sua paródia, que é a afetação das formalidades subalternas, dos trejeitos petulantes, dos convites para os eventos da corte.
Tudo isso, ao contrário, é “a morte e a putrefação de uma aristocracia magnífica”. Ele acreditava na divisão da sociedade em minorias e massas, que é na verdade uma classificação particular de indivíduos ou quando muito de pequenos grupos. As minorias são indivíduos ou grupos “especialmente qualificados”, enquanto as massas são a sua nêmesis. Isso tem tudo a ver com esforço pessoal de superação e crescimento, e nada com fatores objetivos, como os financeiros.
Veja a questão da elegância, que tem sido percebida ao largo de uma qualidade estritamente natural. Não se traduz com vestir- se bem ou, o que é pior, trajar roupas caras. Dizer que uma pessoa está elegante porque está usando uma vestimenta de grife é tão despropositado quanto dizer que está inteligente porque está lendo um livro difícil. É um modo de se expressar que tem que ser entendido depurando os vícios da linguagem e do pensamento.
Voltando a Ortega, ele pediu para que ficasse “bem entendido” que sua concepção aristocrática respeitasse à sociedade e não ao Estado. O descuido desse ponto cobra preço alto; existe entre ambos um intervalo. Pode ser um breve hiato, pode ser um fosso mais fundo, pode ser um abismo intransponível. Afinal, uma democracia organizada e transparente, e uma tirania cruenta e terrorista, são ambas formas de organização política do tipo estatal, mas obviamente de espécies bem diferentes.
O que não é tão óbvio é que o gênero é o mesmo. A coincidência entre Estado e sociedade é forjada pelo discurso jurídico e assimilada pelo senso comum: se grafamos Estado com E maiúsculo e sociedade com s minúsculo é porque aquele conota algo de mais elaborado, de uma evolução pode ir até o fim domundo. Antigo brocardo latino, ainda em vigência, avisa que “ubi societas, ibi jus” (onde existe sociedade existe direito), mas o direito é filho do estado. O que vem da sociedade foi relegado a usos de uma espontaneidade mais ou menos domesticável, em vez de uma recusa deliberada dos perigos que não existem desde o sempre, e que dificilmente serão controlados no presente e no futuro: o trabalho, a economia, a polícia.
Pode-se compreender o fenômeno do direito como um mal necessário, um mal desnecessário ou um bem necessário (um bem desnecessário nunca se viu). Embora as palavras “bem” e “mal” sejam substantivas, estão impregnadas de juízo de valor; estão saturadas de uma subjetividade que a mente humana começa a lapidar antes mesmo de pegar do chão. Quando nos abaixamos para fazê-lo, já estamos tomados por informações e decisões.
A inspiração da mera curiosidade, como se cada dia fosse o primeiro dos dias, é pura artificialidade. E o que dizer de temas complexos conceitualmente? Ortega, desta vez em“O homem e a gente”, relembrou que “todos, em nosso fundo insubornável, temos a consciência de não possuir, sobre essas questões, senão noções errantes, imprecisas, néscias ou turvas”.
Tais questões foram assim exemplificadas: lei, direito, estado, internacionalidade, coletividade, autoridade, liberdade, justiça social. Para todos os gostos, dos mais conservadores aos mais extravagantes, existem escolas, correntes e sub-correntes que estudaram suas particularidades, e podem tê-lo feito bem, mas também trouxeram dúvidas e geraram divisões. Olavo de Carvalho tem sua própria lista, que coincide com a de Ortega apenas e justamente em“direito” (que Olavo coloca no plural), a saber: desigualdade social, diversidade, fundamentalismo, extremismo, intolerância, tortura, medieval, racismo, ditadura e crença religiosa.
Essas palavras, de fato, são muito usadas e muito mal usadas; eu acrescentaria ainda discriminação e preconceito. Não há palavra mais preconceituosa atualmente do que “preconceito”. Essa é a contradição da nossa condição intelectual: se não nos contentamos com o que a nossa modéstia julga insuficiente, resta o esforço hercúleo de ver o mundo inteiro num só relance. O primeiro problema nós não queremos resolver; o segundo nós não conseguimos. Ortega e Olavo são gigantes em cima dos ombros de gigantes, mas não são heróis nem semideuses.
Correio Braziliense - 6/1/2014