Seu navegador nao suporta javascript, mas isso nao afetara sua navegacao nesta pagina MPDFT - A natureza jurídica do ciúme (parte 1)

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Ivaldo Lemos Junior
Promotor de Justiça do MPDFT

A Constituição da República do Brasil arrola alguns princípios que devem ser observados pela Administração Pública, quais sejam, os da legalidade, impessoalidade, publicidade, eficiência e moralidade.Todos eles são bastante conhecidos e têm um significado revelador, quase intuitivo – com exceção do último (que me parece totalmente intuitivo).

A própria Constituição e leis exigem certas qualidades para os ocupantes de cargos públicos, a saber, "reputação ilibada" (para ministros do STF e STJ); "conduta ilibada" (ministros do STM); “idoneidade moral e reputação ilibada” (conselheiros do TCU); "conduta irrepreensível na vida pública e particular" (magistrados em geral); "atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé" (servidores públicos federais).

E mais: membros do Ministério Público da União devem "desempenhar com zelo e probidade as suas funções e guardar decoro pessoal"; Deputados Distritais perderão o mandato acaso seu "procedimento" for "declarado incompatível com o decoro parlamentar". Até mesmo advogados, que não são servidores públicos, e sim profissionais liberais, "devem preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, e atuar com honestidade, decoro, veracidade, lealdade, dignidade e boa-fé", de acordo com o Código de Ética e Disciplina da OAB.

Em vários outros momentos do ordenamento jurídico fala-se em probidade, honestidade, lealdade e outras notas assemelhadas, exigentes de elegância mas que também produzem dificuldades: o encontro entre moral e direito já foi acoimado amiúde de "o Cabo Horn" da filosofia jurídica.

Penso que o adequado entendimento dessas questões passa pela urdidura da imagem metafísica do poder político estatal como algo bom, porque exercido por pessoas virtuosas, confiáveis do ponto de vista ético, cujo trabalho revela uma sabedoria copiosa que pode chegar ao paroxismo de tratar lei e moralidade como sinônimos – no melhor estilo patrístico de que o bem só faz o bem, o mal pode fazer o bem ou o mal. Para quê correr o risco?

Esse retrato idealizado inspira-se no âmbito familiar (sadio): aquele em que o filho acredita na autoridade do pai e até aceita suas repreensões e castigos porque, acima de tudo, reconhece seu amor, sabe que ele lhe quer bem. Sabe que o ama.

De alguma forma misteriosa, os filhos trazem consigo – ainda que não o reconheçam como devessem – a gratidão da própria realidade, que é a transmissão da vida pelos genitores. Essa dialética identifica o valor e o bem, a atividade e o bem visado; não é um dar "para" receber, mas um dar que "é" receber: "O amante, o ato amoroso e o amado integram-se em uma correlação válida em si mesmo, sendo um a ‘norma’ dos outros” (M. Reale).

Estou falando de dedicação e conquista que se traduzem em exclusivismo, orgulho e ciúmes. Ciúmes, nesse caso, é vontade de conservação, o que é positivo, porque se opõe à indiferença, à resignação passiva de ver uma pessoa importante sair da sua vida de uma hora para outra, sem maiores explicações: saiu para comprar cigarro. Não se trata do ciúme "puro" ou "congênito"; não depende de um enredo e não precisa chegar às raias do drama envolvendo Otelo, Desdêmona e, claro, Iago.O marido não tem nada que trancafiar a esposa dentro de casa e nesta instalar até uma cadeira de dentista, mesmo que a paciente, no fundo, se deleite na paranóia de sua volatilidade uxória: ata-me. O pânico de sua evaporação repentina pode ser alegria em estado bruto e absconso. Leiam Molière e verão. Leiam Gustavo Corção e vejam: “Uma das maiores tiranias femininas consiste precisamente em provocar a tirania masculina, e nela instalar-se, como vítima triunfante”.

Dizem que o homem se casa com a mulher querendo que ela não mude, e ela muda. Já a mulher toma o macho por marido querendo que ele mude, e ele não muda. Piadas à parte, que brincam com a moldura do nosso egoísmo, o que o legítimo amador realmente deseja não é mais do que a certeza singela de que o objeto de seu desejo existe. É nessa contemplação, muito mais movida pela autenticidade da imaginação romântica do que pela turbulência do exaurimento carnal, que o amador se transforma ele próprio, naturalmente e em definitivo.

Seguem duas outras partes.

Jornal de Brasília

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