Inácio Filho
Promotor de Justiça do MPDFT
É coisa interessante conhecer alguém com o mesmo nome da gente. Meu pai é um entusiasta da sua denominação e, embora Inácio pareça ser designação incomum, possui ele sete primos com esse nome, todos com personalidades bem parecidas. Mas, nem sempre os xarás se parecem. Meu avô, Sebastião Neves, por exemplo, era um homem muito sensato e humilde. Seu xará, Sebastião do Carmo, ao contrário, era extremamente sistemático, manhoso e finório.
Na década de 40, era comum pras bandas do "Arião", "Araras" e outras fazendas do município de Crixás-GO, a tradicional Folia do Divino Espírito Santo, existente até hoje naquela região. Eram três folias: de São Patrício, do Sertão e de Santa Rita. Os festejos começavam no mês de maio, com a chamada "saída da folia", que girava, por 30 dias, percorrendo as fazendas, de casa em casa. Encerrava-se no mês de junho, com a "entrada da folia", cujo ápice era a "Festa do Imperador", onde era erguido o mastro e servido grande variedade de doces. O "pouso de folia" era o que mais atraia os devotos e foliões. Consistia num grande jantar pra receber toda a comitiva da folia, como o Alferes e os foliões, acompanhados da bandeira do Divino Espírito Santo; além dos "cata-pousos" - uma espécie de penetras que, sem exercerem qualquer função, seguiam a folia de olho na comida farta e gostosa.
Proprietário da fazenda "Arião", vô Bastião ali morava numa casa de adobe, chão batido e fogão de trempe. Tudo muito simples, mas aconchegante o suficiente para, todo ano, dar ali um pouso de folia em que compareciam inúmeros parentes e amigos, simples e graúdos, vindos da redondeza e até mesmo da "rua", como "Joca Ferreira" (nomeado, em 1954, 1º prefeito de Crixás).
Bastião do Carmo, o Xará, mesmo morando num lugarejo distante do "Arião", jamais faltou àquela folia. Gostava de ser tratado de forma especial, não se contentando com o tratamento comum dispensado às demais pessoas. Costumava ir à festa montado na "pêlo de rato" - nome que ele mesmo deu à sua mula, cujo equino, de pele semelhante à de rato, permanecia no "pastinho da porta", enquanto todos festavam. Pra ser "notado" pelas pessoas, Xará gostava de armar sua rede distante da casa, no paiol, ou próximo à beira do córrego.
Chegando ao local do pouso, os foliões - com suas caixas, pandeiros e violas, em versos cantados, saudavam o arco-íris (arco montado e enfeitado com flores, fitas e frutas), pediam o pouso, para, em seguida, dançarem o "batuquim". Após a janta, "tiravam esmola", cuja cerimônia consistia em o devoto segurar a bandeira do Espírito Santo, enquanto os violeiros tocavam e cantavam músicas em louvor ao Divino e em agradecimento à oferta dada. As pessoas doavam desde leitoa, bezerro, jóias finas, até dinheiro. Depois, seguiam-se as danças típicas da folia, como "catira", "viadeira", "roda inteira", "cururu", "ponto", "dança do carneiro", e "vou tirar minha timbira"; em cujas brincadeiras os foliões interagiam–se com as pessoas presentes.
Mais tarde, lá pelas 2h da manhã, era comum o anfitrião oferecer um "café da meia noite". Era um momento ímpar em que as pessoas reuniam-se em torno de uma grande mesa, repleta de pão de queijo, bolo d´água, mãe benta, brevidade, biscoito cozido, bolo de arroz, chá de leite, chá, leite e café. Era costume o dono da casa mandar dois de seus "serventes" fazer o convite aos presentes, cuja incumbência tinha forma protocolar: os serventes, com uma toalhinha sobre o ombro, caminhavam de um lado para o outro da casa indo até lá fora, repetindo, em voz alta, a seguinte exortação: "sinhores e sinhoras, o dono da casa inconvida a todos pra aproximá da mesa que já tá sendo sirvido o café da meia noite". As pessoas dirigiam-se ao terreiro onde, aproximando-se da grande mesa, serviam-se, ali mesmo, em pé, ou sentavam-se num cepo qualquer.
Um dos "cata-pousos", tendo se servido, foi tomar um "ar" na frente da casa, quando percebeu que Bastião do Carmo arreava a mula, transparecendo estar indo embora. Suspeitando que o homem estava zangado, não hesitou o diligente folião em levar ao conhecimento do dono da casa tão grave notícia: "seu Bastião Neves, o Bastião do Carmo tá ali arrumano a mula pra ir imbora, o que que houve?" De imediato, vovô ligou os fatos, vindo a perceber a grande falha quanto ao convite do "café da meia noite": Bastião do Carmo deveria ter sido convidado de modo particular e especial, não podendo ter sido incluído no convite geral feito pelos serventes. Mais que depressa, vovô correu pra porta da rua e, do batente, viu quando Bastião do Carmo apertou, com força, a "barrigueira" da sela do animal, cujo cabresto estava amarrado à uma sucupira. "Enfezada", a mula balançou negativamente a cabeça e deu uma peidorrada, parecendo não querer ir embora. Sem meia conversa, vovô foi direto ao assunto: "onde o sinhor vai Xará"? Respondeu Bastião do Carmo: "tô ino imbora Xará. E o diálogo entre xarás seguiu-se assim:
- "mas, tá muito cedo,Xará"!
- "tá não Xará, tá na hora de ir imbora, seu Xará num cabe aqui mais não".
- "mas, o que que foi, Xará? O sinhor já foi sirvido, Xará"?
- "não, Xará, eu tô cheio. Tô muito cheio, Xará. Seu Xará tá cheio até na tampa".
"pera ai um poquinho, Xará" - implorou meu avô, ao tempo em que, a passos largos, retornou ao interior da casa em busca de socorro àquela inusitada situação. "Bastião do Carmo tá falano sério, ou tá fazeno 'rasto de onça'?", pensou meu avô. Na duvida, vovô foi atrás de seu compadre Pedro Machado e de seus amigos Modesto Maciel e Cândido do Carmo, cuja incumbência era convencer seu xará a voltar, tomar o café, e continuar na festa. Mas, ninguém segurou o homem que, a todo tempo, rugia: "aqui num cabe Bastião do Carmo, tô cheio até na tampa. Eu num sô cachorro de busca não, sô cachorro de rasto".
Tendo montado na mula, Xará consertou o chapeuzão de massa na cabeça e soltou a rédea, mas o equino empacou-se, firmando as patas no chão, só vindo a desempacar-se após várias esporadas na barriga, momento em que saiu em trote acelerado, indo nesta toada até alcançar o "trieiro" de volta. Desconsolado, vô Bastião retornou à cozinha, onde sussurrou: "deixa pra lá, é tudo uma questão de tempo. É logo meu xará tá bão de novo, ele é assim mesmo". Tirando da "gibeira" palha e fumo, lambeu a palha, preparou o pito e acendeu-o, ali mesmo, no borralho do fogão, indo pitar lá fora, encostado no jirau. A terapia lhe fez bem: tendo ido pra sala, tomou mais uma dose de pinga, cuspiu de esguelha no canto para, em seguida, ir espiar, noite inteira, a dança.
Mas, "trieiro" afora, o pior aconteceu: desorientada, a mula pegou caminho errado, se embrenhando, mato adentro, até a margem do ribeirão "Barreiro". Abatido e envergonhado, Xará armou sua rede e foi dormir ali mesmo, no relento, dividindo com a "pêlo de rato", a solidão e o frio gelado do mês de junho, agravado pelo vento forte, vindo do rio e que insistia em soprar na sua direção. No "pispiar" do dia, antes mesmo de o sol vir a lhe fazer companhia segura, Xará pegou o caminho de volta até à desastrosa encruzilhada, quando então retomou o rumo certo, vindo a chegar em sua casa na hora do almoço..
Naquele pouso de folia, todos souberam da cena protagonizada por Xará, afinal, sendo ele excêntrico, era de se esperar tão grotesco comportamento. Já a trapalhada do "trieiro" traiçoeiro em que se embrenharam Xará e a desgovernada "pêlo de rato", permaneceu, anos-a-fio, no anonimato, só vindo a conhecimento público muito tempo depois quando, numa briga entre Xará e sua esposa, esta, para vingar-se do marido, resolveu contar detalhes da peripécia ao seu amigo Sebastião Neves.
Pois bem. Primando pelo respeito à boa ortografia, cabe esclarecer ao assíduo leitor, que a utilização de acento circunflexo na expressão "pêlo de rato" deve-se ao amor incondicional deste simples narrador à autenticidade do fato. Ora, à época dos fatos, vigia a regra gramatical que permitia a utilização do acento diferencial para distinguir, certas palavras, pela acentuação. Em 2009, com a entrada em vigor do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) - do qual o Brasil é signatário - não mais se utiliza o acento circunflexo na palavra "pelo" (de pele), passando a distinção a ocorrer, atualmente, apenas, pelo contexto.
Para guardar fidelidade ao autêntico autor, cabe esclarecer, por último, que o presente causo, ocorrido há mais de 70 anos, foi a mim contado por meu pai, Inácio Pereira Neves, cujo meu xará - memória viva da história de Crixás e, hoje, com 81 anos de idade - na época, era menino, morador do "Arião".
Jornal Diário da Manhã - 27/3/2014